Quem será mesmo o próximo presidente?
O artigo a seguir é de autoria de José Jairo Gomes, Procurador Regional da República no TRF-1 e ex-Procurador Regional Eleitoral em Minas Gerais. O autor é especialista em Direito Eleitoral, com vários livros publicados sobre legislação, crimes e processos penais eleitorais. (*)
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Para algumas pessoas, a resposta à questão de quem será o próximo presidente do Brasil talvez pareça um tanto óbvia. Com o provável impeachment da presidente Dilma Rousseff, será investido na chefia do Estado e do Poder Executivo Federal o vice-presidente Michel Temer. É isso, afinal, o que reza o art. 79 da Constituição Federal, in verbis: “Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder- lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente.”
Mas tal resposta seria apenas parcialmente correta no atual contexto, pois limita-se ao aspecto político-constitucional e não considera todas as facetas envolvidas no debate. Notadamente não considera a dimensão eleitoral da questão.
Por ser fato público e amplamente divulgado na mídia, não se pode ignorar a existência de ações eleitorais em tramitação no Tribunal Superior Eleitoral – TSE. Refiro-me particularmente à Ação de Investigação Judicial – AIJE nº 194358 (protocolada em 18/12/2014) e à Ação de Impugnação de Mandato Eletivo – AIME nº 761 (protocolada em 2/1/2015), ambas sob a relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Contrariamente ao que alguns juristas têm sustentado, tais ações podem, sim, levar à cassação do mandato presidencial, se for comprovado abuso de poder econômico. Mesmo porque, o § 10, art. 14, da Constituição Federal estabelece claramente a possibilidade de se impugnar mandato eletivo perante a Justiça Eleitoral, especificamente em caso de “abuso do poder econômico, corrupção ou fraude”, como é o caso das ações em apreço. É, pois, a própria Lei Maior que estabelece a competência da Justiça Eleitoral para conhecer e julgar a impugnação de mandato, sem fazer distinção de qualquer espécie, notadamente sem distinguir a natureza do mandato impugnado, se majoritário ou proporcional, se de presidente da República, governador de Estado, prefeito, senador, deputado ou vereador. Na prática, a competência é fixada no órgão eleitoral que procedeu ao registro da respectiva candidatura. De modo que, no caso de impugnação de mandato de presidente da República, o juiz natural é o TSE, cabendo recurso extraordinário (CF, art. 121, § 3º, segunda parte) para o Excelso Pretório.
Ocorre que recentemente importantes mudanças foram introduzidas na legislação eleitoral, veiculadas principalmente pela Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015. Entre outras inovações, foram acrescidos no art. 224 do Código Eleitoral – CE os parágrafos 3º e 4º, que alteraram regras determinantes do efeito de decisões da Justiça Eleitoral que cassam – por causas eleitorais, frise-se – mandatos político-eletivos.
Nos termos do caput do art. 224 do CE, se a invalidação resultante do reconhecimento de abuso de poder nas eleições “atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais […] julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.” À luz desse dispositivo legal, a jurisprudência e a doutrina eleitorais sempre foram uníssonas em afirmar que se a invalidação atingisse mais da metade dos votos válidos, a eleição, em si mesma, como ato complexo, seria afetada, restando fulminados os diplomas e os mandatos de titular e vice resultantes, impondo-se, ademais, a renovação do pleito.
Contrario sensu, também de forma pacífica, jurisprudência e doutrina sempre interpretaram o citado art. 224 no sentido de que se a invalidação não atingisse mais da metade dos votos válidos, não se realizaria nova eleição. Nesse caso, cassados os diplomas ou os mandatos dos eleitos por força do ilícito proveito propiciado pelos atos de abuso de poder, deveria o segundo colocado ser diplomado e investido na Chefia do Executivo. No caso de ter havido 2º turno, considerava-se que a chapa vitoriosa no pleito (i.e., no segundo turno) não obteve maioria absoluta no primeiro turno, e, assim, a cassação dos mandatos de titular e vice implicaria a investidura dos candidatos que alcançaram o 2º lugar. Bem ilustram esse entendimento os seguintes julgados do TSE: “i) […] 15. Eleição decidida em segundo turno. Cassado o diploma pela prática de atos tipificados como abuso de poder, conduta vedada e captação ilícita de sufrágio, deve ser diplomado o candidato que obteve o segundo lugar. Precedente. 16. Recurso provido.” (RCED nº 671/MA – DJe, tomo 59, 3-3-2009, p. 35); ii) “[…] 15. Cassado o diploma de Governador de Estado, eleito em segundo turno, pela prática de ato tipificado como conduta vedada, deve ser diplomado o candidato que obteve o segundo lugar. Precedente. Recursos a que se nega provimento.” (RO nº 1497/PB – DJe 2-12-2008, p. 21/22).
Esse cenário, porém, foi alterado pelos §§ 3º e 4º acrescidos ao art. 224 da aludida Lei nº 13.165. Consoante o § 3º, a decisão da Justiça Eleitoral que importe “a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados”.
Portanto, não mais vigora a distinção que se fazia antes no sentido de que: i) se invalidados mais da metade dos votos válidos nas eleições majoritárias, deve o pleito ser renovado com a realização de nova eleição; ii) se invalidados menos da metade dos votos válidos, o 2º colocado no pleito é diplomado e investido no cargo. Doravante, novas eleições sempre deverão ser realizadas, independentemente de a invalidação ter fulminado menos ou mais da metade dos votos válidos.
O problema que se coloca, porém, é que a chapa formada por Dilma Rousseff (titular) e Michel Temer (vice) disputou a eleição presidencial e sagrou-se vitoriosa quando ainda em vigor a redação anterior do art. 224 do Código Eleitoral, e não sob os auspícios da Lei nº 13.165, que só foi promulgada em setembro de 2015.
Haveria aí uma questão de direito intertemporal, um conflito de leis no tempo? Em outros termos, estaria configurada uma situação à qual se poderia cogitar a aplicação da normativa anterior ou a atual redação do art. 224 do CE?
A aplicação de norma anterior se embasa no brocardo tempus regit actum (= incide a lei do tempo em que o fato ocorreu) e tem por efeito a ultratividade da norma anterior, já que esta seria aplicada quando não mais se encontra em vigor. Geralmente, isso ocorre na seara do direito material ou substancial, onde se pode invocar o direito adquirido a uma determinada situação jurídica. Vale ressaltar que o direito adquirido figura no rol de direitos fundamentais, consoante se vê na primeira parte do inciso XXXVI, art. 5º, da Constituição, in verbis: “a lei não prejudicará o direito adquirido”.
Sob essa primeira perspectiva, ao julgar as aludidas demandas eleitorais, o TSE – na hipótese de procedência do pedido formulado na petição inicial e reconhecimento do abuso de poder econômico na eleição presidencial – poderia entender aplicável a norma anterior do art. 224 do CE. Tal conclusão implicaria reconhecer que os segundos colocados no pleito tinham direito a ser diplomados e empossados nos respectivos cargos de titular e vice do Poder Executivo se os mandatos dos integrantes da chapa vitoriosa viessem a ser cassados por causas eleitorais, como são as atinentes a abuso de poder nas eleições. Nessa hipótese, forçosamente (com base na pacífica jurisprudência eleitoral) deveria a Corte Superior Eleitoral diplomar os segundos colocados no pleito presidencial, isto é, os senadores Aécio Neves (titular da chapa) e Aloysio Nunes (vice).
Diferentemente, a aplicação da nova regra inscrita no § 3º do art. 224 do CE funda-se na eficácia natural de toda norma jurídica em vigor, consistente em colher em suas malhas quaisquer situações ocorrentes sob seu império. Como o ato judicial de cassação dos mandatos se daria já sob a vigência da nova regra, esta é a que deveria ser integralmente aplicada. Tal solução, na verdade, constitui a determinação geral no sistema jurídico brasileiro, constituindo exceções a ultratividade e a retroatividade de normas.
Note-se que a segunda perspectiva leva a resultado completamente diverso da primeira. No caso, novas eleições deveriam ser convocadas – não assume, pois, a chapa que ficou em segundo lugar no pleito. Em tal hipótese, poderão as eleições ser diretas ou indiretas, conforme o momento em que o acórdão do TSE transitar em julgado. Nos termos do novo § 4º acrescido ao aludido art. 224, a eleição será “I – indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato; II – direta, nos demais casos.”
Ante tão díspares consequências, impõe-se indagar: qual norma eleitoral deve ser aplicada? Qual trajeto hermenêutico deve o intérprete observar?
Mais razoável se afigura a segunda das duas perspectivas apontadas. Deve, então, incidir na espécie os novos §§ 3º e 4º inseridos no art. 224 do CE.
É verdade que a eleição da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer e o suposto abuso de poder colocado como fundamento (ou causa de pedir) das aludidas demandas eleitorais em tramitação no TSE ocorreram sob a vigência do texto anterior do art. 224 do CE. É igualmente fora de dúvida que naquela ocasião a cassação dos mandatos dos integrantes da chapa majoritária levava à diplomação dos segundos colocados no pleito – no caso em exame, os senadores Aécio Neves e Aloysio Nunes.
Entretanto, não há aqui que se falar em direito adquirido, de maneira a se impor a ultratividade da norma anterior. A bem ver, não existe direito material ou substancial a ser resguardado, porque os segundos colocados no pleito jamais tiveram direito adquirido de serem diplomados e empossados nos respectivos cargos de titular e vice do Poder Executivo. O que eles sempre tiveram não vai além de mera expectativa: em tese, teriam direito à investidura nos cargos se, e somente se, viesse a ocorrer a cassação dos mandatos dos primeiros colocados no pleito. E tal expectativa consubstancia-se em uma regra formal, cuja função é regular os desdobramentos (ou a concreta eficácia) do ato judicial de cassação de mandato. A esse regime ou a tal eficácia não há que se falar em direito adquirido.
Assim, o que ocorreu foi simplesmente uma mudança de opção legislativa que, no máximo, pode ter provocado frustração de expectativas. No entender de muitos juristas, tal mudança é até mais democrática, pois o segundo colocado, por óbvio, não figurou na primeira posição, não foi eleito – e se não foi eleito não poderia ser investido no cargo estatal com plena e indiscutível legitimidade. Uma vez ultimada, a mudança legislativa gera efeitos para o futuro, colhendo todas as situações que ocorrerem sob seu império. Incide, portanto, em situações como a aqui analisada.
À guisa de conclusão, tem-se que, caso as citadas demandas eleitorais em tramitação no TSE sejam julgadas procedentes e reconhecida a ocorrência de abuso de poder no financiamento da campanha eleitoral presidencial de 2014, a consequência lógico-jurídica seria a cassação dos mandatos de ambos os integrantes da chapa impugnada, no caso os mandatos da presidente Dilma Rousseff e de seu vice Michel Temer, convocando-se nova eleição presidencial.
Isso ocorreria ainda que o vice-presidente sucedesse definitivamente a titular do cargo em caso de impeachment ou por outra razão qualquer como renúncia ou morte. É que a vacância do cargo de presidente da República não acarretaria ipso jure a extinção dos aludidos processos eleitorais.
Nos domínios eleitorais, então, acaso julgadas procedentes as demandas eleitorais mencionadas, ao povo caberá dizer quem será o próximo presidente do Brasil.