O Judiciário pode usurpar atribuição do MP?
Sob o título “Mais um capítulo na atuação investigatória do Ministério Público“, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, enviou ao Supremo Tribunal Federal manifestação pelo prosseguimento das investigações contra o senador Aécio Neves pelos eventuais crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro relacionados ao caso de Furnas, subsidiária da Eletrobras. Janot alega que juntou ao pedido diversas provas novas, que não se limitam ao depoimento do colaborador Delcídio do Amaral. Para o PGR, diante dos novos e objetivos elementos, o caso merece nova e mais aprofundada avaliação.
Depois de formalmente instaurado inquérito para a apuração dos fatos e da manifestação “espontânea” do investigado, o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, suspendeu o cumprimento das diligências e determinou o retorno dos autos à Procuradoria-Geral da República. Para a PGR, a versão apresentada por Delcídio, que agora se agrega ao anterior relato de Alberto Youssef, mostra-se bastante plausível. “Orbitam em torno de ambos os relatos diversos outros elementos confirmatórios”, avalia.
Há pouco mais de duas semanas, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, tomou uma decisão atípica. Solicitou que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, reavaliasse a necessidade de investigar o senador Aécio Neves (PSDB-MG), supostamente envolvido num esquema de corrupção em Furnas.
Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes devolveu a Janot um novo pedido de abertura de inquérito sobre o tucano. Dessa vez o procurador-geral pretendia apurar eventual participação do presidente do PSDB em alegada maquiagem de dados do Banco Rural, que teria o intuito de ocultar o chamado mensalão mineiro.
Levantadas a partir da delação premiada do senador cassado Delcídio do Amaral (ex-PT-MS), assim , por certo, é mister que as duas suspeitas sobre Aécio -que nega envolvimento nos casos- dependem de maior averiguação para serem confirmadas ou descartadas. Necessário, pois, dar continuidade às investigações.
A investigação criminal com relação a crimes que teriam sido praticados por autoridades que gozam de prerrogativa de função, é, sem dúvida, uma exceção à regra onde se vê o delegado presidindo um inquérito (conjunto de diligências realizadas pela Policia Judiciária para a apuração de uma infração penal e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo), procedimento dotado de características de discricionariedade (o delegado conduz as investigações da forma que mais lhe aprouver), escrito (procedimento administrativo destinado a fornecer elementos ao titular da ação penal), sigilosidade (o inquérito não comporta publicidade), oficialidade (o inquérito é conduzido por um promotor de carreira), oficiosidade (havendo crime de ação penal pública incondicionada o delegado deve atuar de ofício), indisponibilidade(a jurisdição criminal é de ordem pública) e inquisitoriedade (as atividades persecutórias ficam concentradas nas mãos de uma única autoridade e não há oportunidade para o exercício do contraditório).
O princípio do in dubio pro societate rege a fase do inquérito policial.
O “princípio” do in dubio pro societate significa que, em determinadas fases do processo penal – como no oferecimento da denúncia e na prolação da decisão de pronúncia – inverte-se a lógica: a dúvida não favorece o réu, e sim a sociedade. Em outras palavras, ao receber os autos do inquérito policial, havendo dúvida, deve o Promotor de Justiça oferecer a denúncia. Da mesma maneira na fase da pronúncia: se o juiz ficar em dúvida sobre mandar o processo a júri ou não, deve optar pela solução positiva. Decide-se a favor da sociedade.
Nessas hipóteses o delegado de polícia não poderá indiciá-las nem instaurar inquérito para apuração de eventual infração, pois as investigações vão tramitar perante o tribunal onde a referida autoridade desfruta de privilégio de foro. Será o caso do parlamentar (deputado ou senador) que venha a praticar infração penal quando as investigações vão se desenvolver sob a presidência de um ministro do Supremo Tribunal Federal.
É certo que o Supremo Tribunal Federal, no caso do HC 80.592, Relator Ministro Sydney Sanches, DJ de 22 de junho de 2001, pág. 23, concluiu, no passado, que para a instauração de inquérito policial contra parlamentar não haveria necessidade do delegado de policia obter prévia autorização da Câmara dos Deputados, nem do Supremo Tribunal Federal, bastando submeter o inquérito, no prazo legal, ao Supremo Tribunal Federal, já que é perante este que qualquer ação penal naquele baseada poderá ser processada e julgada.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal reputou nulo o indiciamento de parlamentar por delegado de policia, ao fundamento de que a prerrogativa de foro tem por fito garantir o livre exercício da função de agente público e, para sua efetividade, a supervisão judicial constitucional do Supremo Tribunal Federal deve ser desempenhada durante toda a tramitação das investigações, sob pena de esvaziamento da ideia de prerrogativa, em posição que ficou descrita no Inq. 2.411/QO, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJ de 25 de abril de 2008.
Disse o Ministro Gilmar Mendes que a prerrogativa de foro é uma garantia voltada não exatamente para os interesses dos titulares de cargos relevantes, mas, sobretudo, para a própria regularidade das instituições. Se a Constituição estabelece que os agentes políticos respondem por crime comum, perante o STF (artigo 102, I, “b”, da CF), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do STF. A iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao Ministério Público Federal contando com a supervisão do Ministro-Relator do STF. Sendo assim a Policia não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República. No exercício da competência penal originária do STF (artigo 102, I, b, combinado com a Lei 8.038/90, artigo 2º, e RISTF, artigos 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, da denúncia pelo titular da ação penal pública incondicionada, Ministério Público.
Caso o procurador-geral da República entenda de prosseguir com as investigações e haja decisão contrária do Ministro Relator, deverá ajuizar recurso de agravo.
Cabe afirmar que em sede de investigação aplica-se o principio do in dubio pro societate.
Detém o Parquet poderes de investigação, na forma constante da Constituição Federal. Investigar, aponte-se, é proceder às diligências, empenhar-se em descobrir.
A Constituição ao dar funções primaciais ao Ministério Público lhe dá formas de proteção para que a lei ou outra fonte normativa, até mesmo uma emenda constitucional, não possa afetar-lhe, suprir-lhe, pois, do contrário, estará a sociedade prejudicada na defesa da garantia da ordem jurídica , e outros desideratos que lhe são dados pelo artigo 129 da Constituição Federal, pois o Ministério Público, como fiscal da lei, é instituição cuja permanência é necessária, a bem da sociedade. É o que disse o Constituinte Originário. Daí porque são inconstitucionais as vedações à atividade do Ministério Público que tragam limitações ao fiel desempenho de seu mister constitucional.
Entende-se que a conveniência de se dar prosseguimento ou não na investigação de autoridade com prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, depois de formalmente instaurado o procedimento apuratório com autorização do STF, é ato privativo do procurador-geral da República, cabendo ao órgão judicial o controle da legalidade dos atos de colheita de elementos de prova, mas sem interferência na formação da opinio delicti. Afinal, o Ministério Público é o titular da ação penal pública incondicionada, conduzida dentro do sistema acusatório na busca da verdade real.
Sabe-se que o sistema acusatório, através da separação das funções de acusar, defender e julgar confere direitos e garantias ao réu, sendo este tratado como sujeito de direitos, devendo o Estado observá-los quando da apuração de um delito
Correta a conclusão do procurador-geral da República ao dizer que “ao assim agir, o Poder Judiciário estará despindo-se de sua necessária imparcialidade e usurpando uma atribuição própria do Ministério Público, sujeito processual a quem toca promover a ação penal e, antes disso, munir-se do substrato probatório que o autorize a exercer, responsavelmente, seu munus”, diz. Para ele, a suspensão do cumprimento das diligências já autorizadas equivale à suspensão do curso das investigações, afetando diretamente os trabalhos do órgão acusador, em incontornável violação ao princípio acusatório consagrado pela Constituição Federal de 1988.
A chamada supervisão judicial apontada, nas investigações de condutas de parlamentares, não pode, de modo algum, trazer obstáculos à garantia institucional dada pela Constituição ao Ministério Público de investigar, sob pena de afronta a cláusula pétrea constitucional.