Museus fechados e o cofre aberto da “boca-livre”
Sob o título “Operação Boca-Livre”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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Relembro que, em 2011, a capela São Pedro de Alcântara, uma das joias do Palácio Universitário, na Praia Vermelha, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, foi devastada por um incêndio.
O laudo criminal da Polícia Federal concluiu que as chamas foram provocadas de forma acidental, pelo uso equivocado de um maçarico a gás por um funcionário durante um trabalho de solda. Três pessoas foram indiciadas por crime culposo contra o patrimônio cultural. Num acordo com a Justiça Federal proposto pelo Ministério Público Federal, os três prestaram durante um ano serviços à comunidade ligados à preservação do patrimônio histórico.
A Capela São Pedro de Alcântara está no andar superior do “palácio dos loucos”. Na época da construção, há mais de 150 anos, havia uma relação entre o material e o espiritual na sua arquitetura, com a capela ocupando o plano mais elevado. A inauguração do hospício ocorreu em 30 de novembro de 1852, com o imperador dom Pedro II presente à benção do edifício e à sagração da capela.
A igrejinha recebia as famílias dos pacientes e autoridades, já que o lugar era visto como um marco civilizatório, sendo o Hospício de Pedro II o primeiro hospital psiquiátrico do Brasil e da América Latina. Ele recebeu do Império a mesma atenção dedicada aos palácios.
Um dos mais famosos hóspedes do lugar foi Lima Barreto, que lá escreveu “O Cemitério dos Vivos”. Em 1938, os doentes foram transferidos da Urca para o Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, antiga Colônia de Alienadas. O complexo, abandonado e em ruínas, foi doado para a Universidade do Brasil, que, em 1948, iniciou um processo de restauração.
A Praia Vermelha é muito bonita como bonito é o cenário natural daquela bela cidade. Mas o cenário da capela está desolador segundo as fotos que foram trazidas na imprensa. Parece um prédio em rescaldo.
A capela é parte do complexo arquitetônico inaugurado em 1852 por dom Pedro 2º, incorporado à Universidade do Brasil (depois UFRJ) em 1944 e, desde então, sob a proteção do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O Iphan pertence ao Ministério da Cultura. Mas, seja parte de um ministério ou secretaria, faltam ao Iphan recursos para bem cumprir sua finalidade: ajudar a preservar o patrimônio cultural brasileiro.
Entre outras unidades da UFRJ implorando por reformas estão o Museu Nacional, que completa 200 anos em 2018(ali está o acervo da nossa história desde o descobrimento até a proclamação da República); o prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), no Largo de São Francisco, erguido em 1812 para abrigar a Academia Real Militar, berço da engenharia brasileira; e o da Escola Nacional de Música, no Passeio, ainda no Rio de Janeiro, fechado por falta de… ar condicionado. A isso se somam noticias de museus infestados de goteiras, bibliotecas que não servem para conservar obras preciosas. Noticia-se que o Museu do Ipiranga, em São Paulo, que simboliza a independência do Brasil, está fechado para o público ate 2022.
Isso é dos elementos mais importantes da Cultura: a preservação de sua história, pois país sem história é país sem memória.
Mas havia dinheiro na cultura para o “boca-livre”.
A Polícia Federal de São Paulo deflagrou no dia 28 de junho do corrente ano a Operação Boca-Livre, que investiga desvio de R$ 180 milhões de recursos federais em projetos culturais aprovados junto ao Ministério da Cultura com benefícios de isenção fiscal, previstos na Lei Rouanet.
Policiais federais e servidores da Controladoria Geral da União cumprem 14 mandados de prisão temporária e 37 mandados de busca e apreensão em São Paulo, Rio de Janeiro e no Distrito Federal. Eles foram expedidos pela 3ª Vara Federal Criminal em São Paulo.
Segundo os investigadores da Operação Boca-Livre, armara-se desde 2001 um esquema destinado a obter vantagens dos mecanismos de isenção tributária previstos na legislação de incentivo à cultura.
Segundo a PF, “há indícios de que as fraudes ocorriam de diversas maneiras, como a inexecução de projetos, superfaturamento, apresentação de notas fiscais relativas a serviços/produtos fictícios, projetos simulados e duplicados, além da promoção de contrapartidas ilícitas às incentivadoras”.
A investigação constatou que eventos corporativos, shows com artistas famosos em festas privadas para grandes empresas, livros institucionais e uma festa de casamento foram custeados com recursos públicos.
Uma cerimônia de casamento numa praia em Florianópolis foi financiada com recursos oficialmente destinados a atividades culturais.
O noivo era o herdeiro de um grupo empresarial especializado em conseguir a benesse tributária, com atuação no Ministério da Cultura e na Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.
“O nome Boca-Livre é genial. Vimos nessa madrugada a gravação de um vídeo de um casamento, uma festa boca livre que nós pagamos”, disse o ministro da Justiça Alexandre de Moraes, em coletiva de imprensa na manhã desta terça.
Tudo financiado por isenções de impostos.
É a deturpação da Lei Rouanet que foi sancionada pelo presidente Fernando Collor em 23 de dezembro de 1991, a lei 8.313 instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, que implementou mecanismos de captação de recursos para o setor cultural. Um deles é o incentivo à cultura, ou mecenato (que popularmente ficou conhecido como Lei Rouanet).
No cardápio, além da evidente improbidade administrativa, crimes contra a administração pública, como peculato, e ainda outros como lavagem de dinheiro e organização criminosa, além de sonegação fiscal.
Na renúncia fiscal a Administração abre mão de parte do percentual cobrado pelo tributo para que a iniciativa privada possa investir em eventos de interesse social.
O grande destaque da Lei Rouanet é a política de incentivos fiscais que possibilita empresas (pessoas jurídicas) e cidadãos (pessoa física) aplicarem uma parte do IR (imposto de renda) devido em ações culturais.
O percentual disponível de 6% do IRPF para pessoas físicas e 4% de IRPJ para pessoas jurídicas, ainda que relativamente pequeno permitiu que em 2008 fossem investidos em cultura, segundo o MinC (Ministério da Cultura) mais de R$ 1 bilhão.
Para que um projeto seja aprovado uma proposta deve ser cadastrada junto ao MinC. A proposta passa por um exame de admissibilidade, que diz respeito à viabilidade técnica da atividade a ser realizada. Uma vez que a proposta seja aprovada, ela se transformará em um projeto (com um número de Pronac). O projeto, por sua vez, precisa ser aprovado por uma das unidades técnicas vinculadas ao MinC. Após o parecer do MinC, o projeto ainda é submetido à CNIC que irá aprová-lo ou indeferi-lo.
Houve para os casos detectados ausência de fiscalização. Deixaram de financiar projetos como distribuição de livros para pessoas mais carentes em prol da cultura para promover festas particulares.
A questão não envolve apenas melhoria, aprimoramento, dos mecanismos de fiscalização dos recursos usados para o incentivo à cultura. Envolve o combate à fraude, pois o sistema de renúncia fiscal pela cultura não se confunde com a fraude.