Presunção de inocência e suposição de culpa
Sob o título “O STF está certo: a presunção de inocência é relativa“, o artigo a seguir é de autoria de Diego Dutra Goulart, promotor de Justiça do MP-SP e bacharel em Direito pela PUC-SP.
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O Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente decidiu que a execução da pena pode ser iniciada após decisão condenatória em segundo grau de jurisdição. Este posicionamento pode causar certa incompreensão, sobretudo em razão do que estabelece o art. 5º, LVII, da Constituição Federal (CF): “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
De fato, fazendo-se apenas a leitura deste dispositivo pode parecer que o STF decidiu menos com supedâneo legal e mais com fundamento em uma suposta vontade popular.
Todavia, não foi o que aconteceu.
Isso porque a constituição não assegura genericamente a todos uma presunção absoluta de inocência, mas sim relativa. É preciso esclarecer, nesse contexto, o que é absoluto e o que é relativo. “Absoluto” é algo em relação ao qual não se admite prova em contrário, ao passo que “relativo” é aquilo que pode ser contrariado. É como se o texto constitucional dispusesse: “ninguém será considerado (absolutamente) culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Assim, uma pessoa só será considerada absolutamente inocente ou culpada caso seja acusada de algum crime e, ao final de todo o processo, haja sentença absolutória ou condenatória definitiva (em que não é possível mais nenhum recurso). O que a constituição diz, portanto, é que a presunção absoluta de culpa e, inversamente, de inocência só pode existir ao fim de um processo criminal. Logo, a presunção absoluta resulta sempre de um caso concreto (de uma decisão judicial transitada em julgado).
E antes de promovida uma ação penal? Nessa hipótese, a presunção de inocência assegurada a todos de modo genérico é “relativa”, cabendo, contra qualquer pessoa, prova em contrário, no sentido de ser ela culpada. É exatamente por isso que, em princípio, todos nós somos inocentes, mas podemos ser acusados pelo cometimento de algum crime. Se a presunção genérica garantida a todos fosse absoluta sequer poderíamos ser acusados (pois não caberia nenhuma prova contra a nossa inocência).
Desse modo, caso uma pessoa seja acusada e condenada em primeiro grau por um juiz, ela, de plano, deixa de ser considerada presumidamente inocente e passa a ser supostamente culpada. A presunção de inocência inicial, que era “relativa”, cede lugar a uma suposição de culpa, também “relativa”.
Havendo recurso, a sentença condenatória de primeiro grau será analisada em segundo grau por um colegiado de magistrados. Mantida a condenação, reforça-se a presunção de culpa, que ainda continuará a ser relativa.
Há, nesse instante, ao menos dois modelos claros e distintos a serem seguidos: aquele em que se permite a execução da pena após o “duplo grau de jurisdição” (quando há uma presunção de culpa relativa) e outro no qual ela é possível após o “trânsito em julgado final” (quando há uma presunção de culpa absoluta).
Em um caso ou em outro, não há ofensa à presunção de inocência exatamente por isso, ou seja, porque o que existe, em verdade, é uma presunção de culpa, seja rela relativa ou absoluta.
O STF não alterou a Constituição Federal ao decidir pela possibilidade de execução provisória da pena. Está apenas a dizer que “ela” não impõe que se aguarde o trânsito em julgado de uma condenação para que a execução seja possível, podendo o cumprimento da pena iniciar-se após o duplo grau de jurisdição. Sendo as duas hipóteses constitucionalmente cabíveis, compete ao Congresso Nacional, se o entender, definir legislativamente um momento para que se tenha o início da execução de uma condenação.
Decerto, um argumento contrário à decisão do STF é o de que, assim, corre-se o risco de uma pessoa, condenada em segundo grau, iniciar o cumprimento da pena e, posteriormente, ser absolvida. Como ficaria esta situação?
O raciocínio supra não se aplica somente a este caso. Basta indagar como fica a situação de alguém que é preso preventivamente e depois é absolvido ou, ainda, de quem foi definitivamente condenado, cumpriu anos de pena e, ao fim, descobre-se ser inocente?
É evidente que todas essas situações são indesejáveis e tudo há de ser feito para minorá-las. O que não se pode é proibir a prisão preventiva ou a execução provisória da pena pela possibilidade de existir erro.
Em que pese possa haver equívocos eles são em número muito reduzido face aos acertos. A prisão preventiva e a execução provisória trazem grandes benefícios à segurança da sociedade e nós, individualmente, temos de estar cientes de que podemos ter casos nos quais a prisão ou pena foi desacertada, mas este é um mal impossível de ser eliminado.
O ideal seria que, realmente, tivéssemos apenas qualquer forma de prisão após sabermos se alguém é, definitivamente, inocente ou culpado. Porém, imaginemos uma sociedade sem nenhuma forma de prisão até que haja condenação transitada em julgado, aguardando esgotarem-se todos os recursos possíveis. É um modelo possível no plano teórico? Sim. Contudo, na prática, levaria o caos à sociedade.
Enfim, para quem se “espanta” com o novo posicionamento do STF, ainda fica mais um ponto de reflexão: em qual país do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte?