A Lei da Ficha Limpa e a inexigibilidade
O artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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Decidindo sobre a elegibilidade de Prefeitos que tiveram suas contas negativamente avaliadas pelo Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal Federal, por 6 votos contra 5, concluiu que mesmo tendo as contas consideradas irregulares pelo Tribunal de Contas respectivo o prefeito pode candidatar-se a nova eleição, mantendo, portanto, sua elegibilidade.
Ora, na prática, o STF torna impune boa parte de prefeitos e governadores, os quais, dada a prática usual do fisiologismo no relacionamento entre Executivo e Legislativo, costumam controlar assembleias e câmaras.
A Lei das Inelegibilidades, Lei Complementar nº 64, de 1990, dispõe que são inelegíveis “os que tiverem as contas rejeitadas por irregularidade insanável e que configure ato doloso de improbidade administrativa, por decisão irrecorrível do órgão competente”. Esse dispositivo resultou de alteração introduzida pela Lei Complementar 135 de 2010, a Lei da Ficha Limpa. Esta foi proposta por iniciativa popular, tendo recebido a assinatura de mais de um milhão e trezentos mil eleitores e foi inspirada justamente no propósito de aperfeiçoar o sistema eleitoral.
O relator do caso no Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, foi vencido por seis votos a cinco. Para a maioria dos magistrados, o argumento do presidente do STF, Ricardo Lewandowski, foi mais forte. Segundo ele, por força da Constituição, são os vereadores quem detêm o direito de julgar as contas do chefe do Executivo municipal, porque são eles que representam os cidadãos. Nas esferas estadual e federal, o sistema já funcionava dessa forma, com as assembleias legislativas e o Congresso dando a palavra final sobre as contas do Executivo.
Para que sejam reprovadas, são necessários dois terços dos votos dos parlamentares. A decisão é “retrocesso republicano”.
A Constituição Federal fixa zona de determinações e o conjunto de limitações à capacidade organizatória dos Estados quando manda que suas Constituições e leis observem a seus princípios segundo se lê do artigo 125 da Constituição da República, que podem ser classificados em dois: a) sensíveis; b) estabelecidos.
Os princípios constitucionais sensíveis são aqueles que dizem respeito basicamente à organização dos poderes governamentais dos Estados, que envolve outros princípios particulares, de forma que estão conjugados no artigo 34, VII, da Constituição, dentre os quais a formação republicana e o regime democrático que exige a necessária separação de poderes, que devem ser autônomos. Sabido é que, no Estado Democrático de Direito, e no Regime Republicano, a interpretação há de ser feita com base nos valores sociais e republicanos que a guarnecem de sorte a permitir que os maus governantes sejam responsabilizados política e juridicamente pelas condutas praticadas com abuso ou desvio de finalidade, que sejam em prejuízo do bem comum. Condicionar a decisão das Câmaras ou Assembleias locais sobre a matéria sem levar em conta as decisões sobre os Tribunais de Contas é algo perigoso.
Na prática, o STF torna impune boa parte de prefeitos e governadores, os quais, dada a prática usual do fisiologismo no relacionamento entre Executivo e Legislativo costumam controlar assembleias e câmaras.
Desse modo, infelizmente, nega-se vigência ao artigo 71, inciso II, da Constituição Federal de forma a permitir que diversos corruptos fiquem livres dela.
A matéria foi levada a discussão ao Supremo Tribunal Federal nos RE 848.826 e 729744.
Para a discussão da matéria, o ponto fundamental é a existência de uma norma constitucional expressa dando tratamento especial ao controle das contas dos Prefeitos Municipais. Esse dispositivo é o artigo 31 da Constituição, segundo o qual a fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno dos Municípios.
No parágrafo primeiro acrescenta-se que o controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver. Esta expressão final justifica-se pelo fato de que apenas os Municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo têm o seu próprio Tribunal de Contas. Nos demais Estados essa atribuição é dada ao Tribunal de Contas estadual.
Veja-se o que é fundamental. O parágrafo segundo desse artigo 31 dispõe o seguinte: “O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal”. Como fica bem claro por esse dispositivo constitucional, o parecer do Tribunal de Contas sobre a regularidade ou irregularidade das contas prestadas pelo Prefeito não prevalecerá, ou seja, não será considerado juridicamente eficaz, se dois terços dos membros da Câmara Municipal decidir que ele não prevaleça. Assim, pois, por disposição constitucional a conclusão do Tribunal de Contas, favorável ou contrária à regularidade das contas apresentadas pelo Prefeito, não será acolhida se dois terços dos Vereadores assim o decidir.
Esse é o centro das controvérsias, como disse Dalmo de Abreu Dallari.
Os ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, tomando por base uma distinção estabelecida pelo Tribunal Superior Eleitoral, que distingue entre contas de governo e de administração, votaram pela inelegibilidade do prefeito se a conclusão do Tribunal de Contas relativa à gestão das finanças municipais afirmar sua irregularidade, dizendo que as “contas de gestão” devem ser julgadas pelo Tribunal de Contas, sem participação do Legislativo. Diferentemente dessas, as “contas anuais de governo” é que devem apreciadas pelo Legislativo, segundo eles. Contrariamente a essas conclusões, assinalou a Ministra Carmen Lúcia que a Constituição não estabelece distinção entre contas de governo e de gestão e, além disso, é muito clara quando dispõe, no artigo 31 e em seu parágrafo 1º, que a fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo, “com o auxílio dos Tribunais de Contas”. Assim, pois, o Tribunal tem a função de auxiliar e não de julgar, como pondera a Ministra.
Na lição de José Afonso da Silva, “Comentário Contextual à Constituição”: “O parecer prévio que o Prefeito tem que prestar anualmente à Câmara Municipal, emitido pelo órgão de contas competente,não tem apenas o valor de uma opinião que pode ser aceita ou não. Não é, pois, um parecer no sentido técnico de opinião abalizada, mas não-impositiva. Ao contrário, ele vale e tem a eficácia de uma decisão impositiva. Sua eficácia pode, porém, ser desfeita se dois terços dos membros da Câmara Municipal votarem contra ele. Só assim ele não prevalecerá.”