Manifestações de rua e prisão ilegal

Frederico Vasconcelos

O artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.

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O Centro de Comunicação Social do Exército informou neste sábado que “apura as circunstâncias” em que um capitão da corporação se infiltrou no grupo de manifestantes presos no último domingo durante manifestações contra o governo Michel Temer e a favor de eleições diretas para presidente na Avenida Paulista. Reportagem do site do jornal espanhol “El País” identificou o capitão do Exército Willian Pina Botelho como a pessoa que se passou por militante antigoverno, com nome falso, e convenceu um grupo de manifestantes a se deslocarem para um local distante da manifestação, onde foram presos em ação da Polícia Militar (PM) antes da realização do protesto.

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, os 18 detidos tinham máscaras de gás, óculos, estilingues, vinagre e itens de primeiros socorros. A PM informou que também carregavam pedras e uma barra de ferro, o que eles negam. A prisão foi classificada como ilegal pelo juiz Paulo Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, do Fórum Criminal da Barra Funda, que determinou a soltura imediata dos detidos no dia seguinte à prisão.

O grupo de adultos, preso na avenida Vergueiro quando se reunia para ir ao ato no domingo, havia sido formado no Facebook recentemente. Por isso, nem todos se conheciam pessoalmente, segundo relatos dos participantes. Havia pessoas de outras cidades além de São Paulo, como Campinas. Não havia uma liderança. Conversavam por meio dessa rede social até que decidiram combinar de se encontrar antes da manifestação. Para isso, criaram um grupo no WhatsApp com cerca de 40 pessoas chamado 13h Metro Consolação, em referência ao local e hora do encontro.

Parte do grupo se encontrou na estação Vergueiro para seguir em direção à Consolação. Ali, por volta das 15h30, a Polícia Militar os deteve, porque, de acordo com o coronel Fyskatoris, eles “se apresentaram em atitude suspeita”. Foram consideradas em flagrante por associação criminosa, segundo o coronel depois que os policiais fizeram uma entrevista com cada um deles. O coronel disse que seis pessoas já tinham passagem pela polícia. “Eles faziam parte de várias células que estariam espalhadas pela cidade”, afirmou. “Eles foram entrevistados e declararam em entrevista que estavam ali reunidos, organizados para sair pela cidade para praticar atos de agressão contra as pessoas”, disse o coronel na entrevista coletiva.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou, por meio de nota, que o grupo foi levado pela polícia porque portava “máscaras e pedras”. Consta no Boletim de Ocorrência ao qual “El País” teve acesso que entre os objetos encontrados havia microfones, óculos, armação de óculos, um extintor de incêndio, vinagre, lanterna, máquina fotográfica, pilha, bateria, material de primeiros socorros, capacete e uma barra de ferro, que, segundo os detidos, não pertencia a nenhum deles.

Na decisão do juiz Aguirre Camargo, no entanto, ele afirma que não houve investigação prévia sobre os suspeitos. “A prisão ocorreu de um fortuito encontro com policiais militares que realizavam patrulhamento ostensivo preventivo e não de uma série e prévia apuração de modo que qualificar os averiguados como criminosos organizados à míngua de qualquer elemento investigativo seria, minimamente, temerário”. O juiz afirma que não há “mínima prova” de que todos se conheciam e que nenhum objeto de porte proibido foi apreendido.

Penso que a associação criminosa deve envolver a prática de crimes dolosos, não culposos, ou contravenções com pena máxima superior a quatro anos.

Assim como na quadrilha ou bando estamos diante de um crime permanente, onde os agentes são levados a delinquir indefinidamente, dentro de uma estruturação ordenada,com necessária divisão de tarefas, ainda que informalmente, mesmo que na prática de crime continuado ou ainda de habitualidade, como se vê no tráfico de mulheres, dentro de uma contínua vinculação entre os que participam da organização.

Com o devido respeito não se pode criminalizar manifestações populares, tipificando-as como associação criminosa.

Sabe-se que no Estado Democrático de Direito no Brasil não pode haver legitimação para prisão para averiguação. A prisão foi feita sob o pretexto de que os estudantes que estavam reunidos poderiam, de forma eventual, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação de caráter ideológico sob o lema ordem e progresso.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXI, da Constituição Federal preceitua dever ocorrer a prisão somente em decorrência de flagrante e por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária.

Nessa mesma linha, a Lei 12.403/11, norma infraconstitucional, ao dar redação atual ao artigo 283 do Código de Processo Penal determina que ¨ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso de investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.¨

Ao estudar a prisão provisória, que é aquela efetuada no transcorrer da persecução penal, precedentemente ao proferimento de sentença definitiva, Rogério Lauria Tucci (Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, 4ª edição, pág. 203) diz que excetuadas as hipóteses de transgressão ou de prática de infração de natureza militar, prescritas na legislação em vigor: a) indivíduo somente poderá ser preso quando estiver cometendo crime; b) ou em decorrência de ordem escrita e devidamente motivada de autoridade judiciária competente. Ainda assim, somente será levado à prisão ou nela mantido, quando não tiver direito à liberdade provisória com ou sem prestação da fiança.

No sistema processual penal brasileiro não há que falar na figura da execução provisória de julgado penal condenatório, como disse Sidnei Agustinho Beneti (execução penal, pág. 88 e 89), pois não há como admitir, no Brasil, que suporte o acusado a execução penal enquanto não declarada, com certeza, que ele cometeu a infração penal.

Por sua vez, a verdade, no processo penal, há de ser perseguida de tal forma a se falar em inquisitividade ínsita à persecução penal, de forma que pode se orientar numa inquisitividade dirigida à apuração da verdade material ou atingível.

A chamada prisão para averiguação não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Aponto como uma exceção a possibilidade de tal detenção nos casos de transgressões disciplinares, no âmbito militar, ou quando houver uma suspensão momentânea das garantias constitucionais por força de estado de defesa ou estado de sítio, na correta lição do Ministro Celso de Mello e ainda de Celso Bastos (Comentários à constituição do Brasil, volume II, pág. 292).

Correta a conclusão de Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 609) quando diz que a prisão para averiguação é um procedimento policial desgastado pelo tempo e que foi sepultado desde a vigência da Constituição de 1988.

Não há cabimento em admitir que a polícia civil ou militar detenha pessoas na via pública, para averiguá-las, levando-as presas ao distrito policial.

Considero que a efetivação da prisão para averiguação leva a crime de abuso de autoridade, do que se lê do artigo 4º, d, da Lei 4.898/65.

Colho jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná (JUTACRIM 24/305) ao registrar que a chamada prisão para averiguações, prática usual em tempos de ditadura, constitui-se numa grande ilegalidade, após a Constituição de 1988, num flagrante abuso de poder.

Notável em sua substância e dimensão, a sentença emanada pela Juíza Federal Shira Scheindin, considerando inconstitucional a prática procedimental do stop and frisk (pare e reviste) existente na cidade de Nova York. Com os números mostrando que 87% das 533.042 pessoas paradas para averiguação no ano passado eram negras ou de origem hispânica, constatou-se uma violação da Constituição e da chamada ¨listagem racial indireta¨de milhares de nova-iorquinos, lembrando que a maioria dos suspeitos é de homens jovens e inocentes, numa abordagem discriminatória e desproporcional de milhares de negros e hispânicos com a conivência de altos oficiais da policia.

A decisão historiada constatou flagrante violação sistemática , sobretudo, dos artigos 4º (que protege o cidadão contra buscas e apreensões injustificadas do governo) e ainda do 14º (que garante a proteção igualitária).

Por aqui, a Constituição veda à lei estabelecer desigualdades entre os homens, por serem humanos. Por sua vez, as medidas cautelares de busca e apreensão devem ser regidas nos estritos termos das garantias e liberdades individuais estabelecidas na Constituição, moldadas no princípio da proporcionalidade.

De outra parte merece averiguação o fato de militar estar infiltrado em manifestação contra o governo, em atitude que muito lembra condutas de governos em ditaduras de outrora.

Ao que se sabe o governo da presidente impedida não coibiu manifestações. Começa, nesse sentido, mal o governo que se inicia após o impeachment.