A nova gestão do STF e o canto da sereia
O artigo a seguir, sob o título “O canto da Sereia”, é de autoria dos juízes federais Eduardo L.R. Cubas, de Goiás, e Roberto Wanderley Nogueira, de Pernambuco. (*)
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O encantamento dos discursos proferidos a cada mudança nas gestões do Poder Judiciário, ocorrentes de dois em dois anos, busca revolucionar a forma como a entrega da Justiça ocorrerá durante o curso das respectivas gestões. Se há algo que possa parecer mais sedutor aos discursos da ocasião são mesmo os temas relacionados com o “povo”, a “Justiça” e a “democracia”.
Iniciamos uma nova era de promessas com a posse da ministra Cármen Lúcia à frente do STF.
Sua marca se inicia pela modéstia na celebração do evento inaugural de um novo mandato presidencial à Suprema Corte. Água e café foram servidos, apenas. A nova presidente, e não presidenta, como quer se chamar, diz preferir processos a todo o resto. Nisto, é claro, pode-se enxergar um apelo ao povo, titular ao governo honesto e que aprecia, em regra, a humildade nos gestos de dignitários como forma de harmonização de suas aspirações com os projetos anunciados, particularmente em um momento de crise como o que vive o país atualmente. A manifestação ou mesmo a promessa de austeridade no trato dos serviços judiciários traduz um forte apelo ao sentimento coletivo de agradabilidade.
Esse pensamento trás, em si, uma grande preocupação: o suposto distanciamento sugerido entre o detentor de poderes da República e o caráter político da própria representação. A experiência histórica demonstra o quão burocrático é o paradigma de conduta funcional em face da realidade no socius. Alguns dos temas relativos ao “interesse popular” estão na pretensa decisão de analisar os limites de interferência do Poder Judiciário na saúde pública, por exemplo.
Preocupante. É que o tema em questão, se pacientes com doenças crônicas de tratamento dispendioso devem simplesmente ser negligenciadas até à morte ou ser atendidas adequadamente pelo SUS, não constitui, em princípio, matéria de competência da Suprema Corte, haja vista que os casos, um a um, são sempre analisados pelo Juiz de primeira instância na esteira das alegações de urgência e irreversibilidade que normalmente encerram e desde logo comumente se resolvem.
É dizer: quem vai decidir mesmo se o cidadão vai receber ou não o tratamento é o Juiz imediato, à revelia, sempre, do que se decidir no Supremo Tribunal Federal diante das circunstâncias de cada caso concreto, na medida de ser praticamente impossível um disciplinamento para cada pessoa ou doença. É da natureza empírica da situação posta que a tanto se revela como imediatidade.
Portanto, essa nova visão da mulher Juíza à frente do processo já parece intentar excluir o foco e a própria responsabilidade do Supremo Tribunal Federal, firme no fato de que se trata de uma Corte que não exerce seu papel principal na maioria dos conflitos produzidos pela sociedade: o controle das incontitucionalidades. Basta observar a quantidade enorme de Ações de Inconstitucisonalidade propostas e simplesmente não julgadas na mesma proporção. Estas, sim, do maior interesse social. Seria uma questão de Justiça?
Com efeito, ao par das estatísticas, o que se vê da atuação da Suprema Corte no Brasil é que o exercício de suas competências originárias deixa muito a desejar, tanto assim que na esfera criminal o Supremo Tribunal Federal, até bem pouco tempo, jamais tinha condenado algum político. Isto se deu somente na esfera do conhecido processo do mensalão.
Ora, se a sociedade clamou por Justiça, aqui centradas na adoção de medidas efetivas de combate à corrupção, cujo ápice se faz notar no recente impeachmentde um presidente da República, como compreender essa manifesta omissão do órgão máximo do Poder Judiciário em julgar as causas que lhe são postas? É o Supremo Tribunal Federal corresponsável pela situação a que se chegou algo como que pela sua permissividade ou leniência?
Se efetivamente for de Justiça que se busca, parece claro concluir que a manutenção de determinadas competências originárias nas atribuições da Suprema Corte deveria ser objeto de expressa manifestação de sua presidência atual na medida em que se clama pelo fim do chamado foro privilegiado.
Por fim, dentro do chamado Estado de Direito há um paradoxo funcional: o Poder que é o responsável pela manutenção da cláusula democrática, passados mais de 28 (vinte e oito) anos da nova ordem constitucional, ainda é regido por uma lei defasada, capenga e, sobretudo, despida de ares democráticos.
Para a atual Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Loman – sequer a Justiça Federal existe, para se ter uma ideia, sabendo a sociedade hoje, pela concretude da Operação Lava Jato, da importância deste ramo do Poder Judiciário. Lamentavelmente, a cada nova gestão que entra e que se despede o mergulho do Poder Judiciário na atmosfera democrática é raso, talvez mesmo inexistente.
Assim, resta aguardar sobre o destino que o Supremo Tribunal Federal dará ao Mandado de Injunção MI/6632, impetrado, como que simbolicamente no esforço de edição do futuro Estatuto da Magistratura (único segmento dentre as carreiras de Estado ainda não regulamentado à luz da Constituição de 1988), para atestar se os discursos da ocasião celebrativa de um novo mandato de presidente à Suprema Corte é, ou não, um autêntico canto da sereia!
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(*) Eduardo L. R. Cubas é Mestre em Direito (Universidade de Salamanca) e presidente da UNAJUF. Roberto Wanderley Nogueira é Doutor em Direito (Universidade Federal de Pernambuco).