Carta aberta da Magistratura e MP contra corrupção
Durante manifestação que reuniu centenas de juízes e membros do Ministério Público na sede do Supremo Tribunal Federal, nesta quinta-feira (1), a ministra Cármen Lúcia, presidente do Conselho Nacional de Justiça e do STF, recebeu da presidente da Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas), Norma Cavalcanti, uma carta aberta contra a corrupção e a impunidade.
O movimento foi um protesto contra a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de dispositivo incluído no projeto de lei de combate à corrupção que tipifica como crime de abuso de autoridade determinadas ações de magistrados e promotores.
“Estamos juntos para que a Constituição seja garantida e tenhamos um país justo para todos”, afirmou Cármen Lúcia ao receber o documento.
Eis a íntegra da manifestação:
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CARTA ABERTA DA MAGISTRATURA E DO MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA A CORRUPÇÃO E A IMPUNIDADE
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A FRENTAS – Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público, congregando mais de 40 mil juízes e membros do Ministério Público, reunida no dia de hoje, à vista das recentes notícias veiculadas pelos meios de comunicação acerca das pautas do Congresso Nacional, vem à presença de Vossa Excelência, com o máximo acatamento, denunciar a iminência de grave atentado contra a independência e a autonomia da Magistratura e do Ministério Público brasileiros, nos seguintes termos.
A independência da Magistratura e do Ministério Público são garantias constitucionais da cidadania. E, porque têm garantias constitucionais inafastáveis, juízes e membros do Ministério Público conseguem atuar com destemor, sem receio de represálias orquestradas por autoridades políticas, grupos econômicos, organizações de toda espécie ou personagens influentes. Não por outra razão, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas externou, em 1985, os Princípios Básicos das Nações Unidas para a independência do Judiciário, na convicção de que “é dever das instituições, governamentais e outras, respeitar e acatar a independência da Magistratura” (art. 1º), de modo que “os juízes devem decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, baseando-se nos fatos e em consonância com a lei, sem quaisquer restrições e sem quaisquer outras influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas ou indiretas, de qualquer setor ou por qualquer motivo” (art. 2º).
Da mesma forma, ao subscrever a ratificar o Pacto de San José da Costa Rica (Decreto n. 678), o Brasil assumiu o compromisso de garantir, a toda pessoa, o direito de ser ouvido “por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza” (art. 8º, 1).
Não é, porém, o que deriva de recentíssimas investidas de certos parlamentares que agora propõem a criminalização da atividade judicial e ministerial, de modo que, p. ex., torne-se crime de responsabilidade a conduta de “condenar pessoa física ou jurídica sem os elementos essenciais à condenação, assim reconhecido por decisão judicial colegiada de segunda instância” (art. 39, 11, do PL n. 4.850/2016, na sua proposta de plenário, aprovada na calada da noite do dia 30 p.p., no chamado “bonde da madrugada”).
Ou quando se passa a permitir a qualquer pessoa “denunciar perante o Senado Federal, os Magistrados e membros do Ministério Público, pelos crimes de responsabilidade que cometerem” (art. 41 do PL n. 4.850/2016). Ou, ainda, quando se prevê ser crime de abuso de autoridade “deixar de relaxar prisão em flagrante formal ou materialmente ilegal que lhe tenha sido comunicada” (artigo 10, V, do PLS n. 280/2016, que define os “novos” crimes de abuso de autoridade); quem dirá, afinal, da ilegalidade material? Os tribunais de apelação? Relaxadas ou revogadas as prisões em segundo grau, responderá automaticamente, por abuso, o juiz de primeiro grau? Ou quando criminaliza quem dá início ou procede à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada (art. 30, PLS 280) que pode gerar uma sanção penal pela simples rejeição de uma inicial ou improcedência da ação.
E, na mesma linha, o que dizer quando se quer criminalizar a “violação das prerrogativas de advogados”, sem qualquer clareza a respeito de quais condutas do juiz ou do promotor configurariam, no trato diário com quase um milhão de advogados de todo o país, o referido crime?
Todas essas propostas, no entanto, caminham para a pronta aprovação no Congresso Nacional – e agora, particularmente, no Senado da República -, a toque de caixa, sob os auspícios da presidência daquela Casa.
Em todos esses casos, com efeito, o que na realidade se pretende criar são contextos de medo e hesitação que contaminarão a atuação do juiz, do promotor ou do procurador que, entendendo de certo modo as questões de fato e de direito, possa vir a ser administrativa ou criminalmente processado e condenado, apenas porque o entendimento do tribunal ao qual está vinculado – ou de algum tribunal superior − é diverso do seu, ou ainda porque adota interpretação de lei que é ou virá a ser minoritária no âmbito das cortes superiores.
Recriam-se, ademais, os chamados “crimes de hermenêutica”: o juiz ou o membro do Ministério Público podem ser responsabilizados, com prejuízo para as suas vidas funcionais ou mesmo para a sua liberdade, quando o seu convencimento jurídico motivado não corresponder àquele que, afinal, prevalecer. Nada mais odioso: sob tais circunstâncias, jamais teriam sido prolatadas inúmeras das decisões judiciais inovadoras em sede de direitos individuais e sociais que hoje balizam a jurisprudência nacional; não teriam sido prolatadas muitas sentenças e acórdãos de perfil contramajoritário; as súmulas e orientações jurisprudenciais não estariam se renovando, de acordo com as necessidades da população; e jamais teriam sido possíveis operações oficiais de desbaratamento de esquemas complexos de corrupção, como, p. ex., a própria Operação LavaJato.
É notória, portanto, a obstinação de certos segmentos do panorama político nacional em retaliar a Magistratura e o Ministério Público, seja por meio das medidas acima, seja por intermédio de outras tantas que, na perspectiva judicial, administrativa ou orçamentária, fragilizam as instituições judiciárias.
Por tais razões, Excelentíssima Presidente, a FRENTAS está conclamando a sociedade civil e os parlamentares comprometidos com a probidade, com a ética pública e com a integridade das instituições judiciárias a resistirem à aprovação dos textos referidos, notadamente ao chamado “PL do Abuso de Autoridade” e ao PL n. 4.850/2016, naquelas seções que contrabandearam silenciosamente novos “crimes de responsabilidade” no Projeto das 10 Medidas contra a Corrupção, transformando-o, a rigor, em um projeto de intimidação de juízes, promotores e procuradores nos esforços de combate à corrupção. É também nesse sentido o apelo que ora fazemos a V.Ex.a, assim como a todos os ministros desse Excelso Pretório. Combatamos todos juntos, com imparcialidade, justiça e rigor jurídico, o bom combate republicano.
Brasília, 1º de dezembro de 2016
NORMA ANGÉLICA REIS CARDOSO CAVALCANTI – Presidente da CONAMP e Coordenadora da FRENTAS
JOÃO RICARDO COSTA – Presidente da AMB
GERMANO SILVEIRA DE SIQUEIRA – Presidente da ANAMATRA
ROBERTO VELOSO – Presidente da AJUFE
JOSE ROBALINHO CAVALCANTI – Presidente da ANPR
ELISIO TEIXEIRA LIMA NETO – Presidente da AMPDFT
ÂNGELO FABIANO F. DA COSTA – Presidente da ANPT
CLAURO BORTOLLI – Presidente da ANMPM
SEBASTIÃO COELHO DA SILVA – Presidente da AMAGIS-DF