Anamatra: “Presente de Natal para quem?”
O artigo a seguir é de autoria de Germano Siqueira, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra. (1)
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A cerimônia realizada no último dia 22 de dezembro, no Palácio do Planalto, para celebrar supostos ganhos reformistas na legislação social brasileira, não pode ser entendida como outra coisa a não ser a rendição de um governo aos esforços que o poder econômico empreende, há anos, no sentido de subverter a lógica da ordem constitucional vigente, em um país marcado pela desigualdade, inclusive desmerecendo os traços cardeais da doutrina que orienta o Direito do Trabalho, no Brasil e no mundo.
A esse respeito é clássica a lição do saudoso jurista uruguaio Américo Plá Rodriguez ao dizer que “ (..) o Direito do Trabalho surgiu como consequência de que a liberdade de contrato entre pessoas com poder e capacidade econômica desiguais conduziu a diferentes formas de exploração [daí que ] o legislador não pode mais manter a ficção de igualdade existente entre as partes do contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa desigualdade econômica desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica a ele favorável. O Direito do Trabalho responde fundamentalmente ao propósito de nivelar as desigualdades (…)” [Princípios de Direito do Trabalho, trad. Wagner D. Giglio, São Paulo : LTr, 2000]
Mas não se pode dizer que esses gestos atuais sejam uma surpresa. Está em curso –e já assinalei em artigos anteriores- um movimento de desconstrução das políticas de Estado que contribuem para uma sociedade mais justa, como a adoção de leis respeitadoras da dignidade dos trabalhadores e das que possibilitem equilibrar a sua condição econômica e social.
E os exemplos não são poucos nem menos graves. Pretende-se rapidamente aprovar ano vindouro, já nos primeiros meses de 2017, como consequência do “terreno preparado” em 2016, um conjunto de medidas que viabilizariam exatamente esse desmanche.
A primeira delas já está sendo articulada como prioridade. Trata-se da ignominiosa e absurda reforma da Previdência, em que o Governo apresenta à população um déficit inexistente para vender a reforma como única saída. Na verdade, por detrás dessa proposta há interesses do Sistema Financeiro em gerir esse filão, bem como em alavancar o crescimento de planos de previdência complementar, inclusive com aportes de recursos do Tesouro. A Previdência pública, como hoje está, se bem equacionada e creditada por todas as suas fontes constitucionais de receita, é superavitária. Mas o caminho escolhido é sacrificar o povo.
Outra medida que será objeto de forte tensão legislativa é o PLC nº 30/2015, que regulamenta a terceriização, hoje em tramitação no Senado, onde tramita há mais tempo. Aliás, não havendo ainda acúmulo suficiente para deliberar sobre o texto, um grupo de deputados chegou a ressuscitar o PL nº 4302/1998 que estava “dormindo” nas gavetas da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara desde o governo Fernando Henrique Cardoso(já aprovado no Senado), na tentativa de também aprová-lo naquela outra Casa, e apenas na CCJ, terminativamente, sem passar pelo Plenário, desrespeitando o processo legislativo que está em curso sobre essa matéria.
Certamente, agem assim não a pedido da população e dos trabalhadores, mas por demanda dos setores empresariais.
E sobre essa mesma matéria é preciso alertar para o fato de que o mercado conta, aproximadamente, com 12 milhões de trabalhadores terceirizados, contra 35 milhões de contratados diretos, sendo que a remuneração média dos terceirizados fica em torno de 30% abaixo daqueles outros. Isso sem falar da preocupação que se deve ter com a questão da saúde e segurança laboral, já que de cada dez acidentes de trabalho no Brasil, oito acontecem com empregados terceirizados, de acordo com levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Em um panorama de aprovação do PLC 30/2015, que libera a prática da terceirização de forma generalizada, inclusive na atividade fim das empresas, a tendência é, a curto e médio prazos, que a proporção trabalhadores diretos inverta, ou pelos menos haja forte, ampla e majoritária migração dos contratados diretos para o regime de terceirização, sem mencionar a consequente redução sistêmica de salários em pelo menos 30%, além do favorecimento do aumento de jornada sem pagamento regular de horas-extras (como já ocorre hoje) e até mesmo o proporcional aumento dos acidentes laborais, repercutindo devastadoramente na vida das vítimas e de suas famílias, em primeiro lugar, mas também na contabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos benefícios da Previdência Social.
É ainda importante esclarecer e corrigir com veemência a desinformação sempre repetida em matérias e informes publicitários dando conta de que o projeto de terceirização em trâmite equipara os diretos dos terceirizados aos contratados diretamente, o que é totalmente falacioso. Ao contrário, caso haja aprovação da proposta, como querem os setores econômicos, haveria ampliação da desigualdade hoje vivida pelos 12 milhões de terceirizados para um universo ainda maior de trabalhadores.
No que diz respeito à infeliz ideia da prevalência do negociado sobre o legislado, que foi também objeto da cerimônia do último dia 22 de dezembro, tendo o Governo enviado o PL nº 6787/2016, em regime de urgência, para tratar desse tema, entende-se que a redução, derrogação ou negociação prejudicial de direitos trabalhistas, pela via negocial coletiva, somente está autorizada nos estreitos limites daquilo que foi estritamente excepcionado pela Constituição Federal (art.7º). Qualquer passo em outro sentido tende a ser, na prática, retrocesso social eivado de desconformidade constitucional e convencional.
Fragilizar as regras jurídicas gerais de proteção ao trabalho é negar a tutela legal deferida aos seus destinatários há mais de 70 anos, e há mais de 25 anos, reforçada pela Constituição de 1988. Contra essas proposições retrocessivas a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra coloca-se com fiel observância ao decidido em seus Conamats (congressos bianuais deliberativos), ao comando de seu Estatuto e em defesa do Direito do Trabalho.
Ao contemplar esse panorama político no país, com o aprofundamento recente, verifica-se que talvez esteja havendo um novo movimento regressivo comandado por “cabeças” voltadas para concepções já desacreditadas no mundo. Dani Rodrik, professor de Política Econômica Internacional da Universidade Harvard, em artigo intitulado “Goodbye Washington Consensus, Hello Washington Confusion – Harvard University, January 2006”, já afirmou: “[…] ninguém mais acredita no Consenso de Washington. A questão agora não é saber se o Consenso de Washington ainda vive; é saber-se o que deverá substituí-lo. Estabilizar, privatizar e liberalizar tornou-se o mantra de uma geração de tecnocratas que estavam tendo sua primeira experiência no mundo subdesenvolvido, e dos líderes políticos por eles aconselhados”.
E no mesmo sentido, em ensaio sob o estudo intitulado “Um Novo Consenso Pós-Keynesiano de Washington Pós-Crises: O Reencontro do Estado com o Mercado?”, o doutor em Economia pela Universidade de Yalle, René Villarreal pontuou : […] as crises financeira e econômica que afetam o mundo desde finais de 2008 e as políticas que vão usando os Estados para sair dela têm significado a morte do Consenso de Washington: do paradigma do mercado livre autorregulado e do Estado minimalista. Os governos têm reagido com políticas que se podem considerar pós-keynesianas, pois vão mais além das políticas Keynesianas. […] Paradoxalmente é em Washington, com a política econômica do governo de Obama, onde se reconhecem as falhas e limitações do mercado livre e autorregulado, além da necessidade de implementar uma nova política econômica para resgatar o capitalismo da crise financeira e econômica mais crítica desde a Grande Depressão.
Ao que parece, portanto, pretende-se entregar aos trabalhadores no Brasil, como consequência desse falso “presente de Natal” , um modelo de desregulamentação completa do mercado de trabalho ou algo equivalente ao modelo de diagnóstico já desacreditado no mundo, que teria como instrumentos a doção do negociado sobre o legislado, a ampla terceirização e , de quebra, uma reforma previdenciária que levará a sociedade ao trabalhado contínuo e indefinido, sem contar as perdas assistenciais.
Em tal panorama a pergunta é: por que afastar a tutela do Estado e da lei sobre as normas legais mínimas e mais favoráveis ?
O professor emérito em Linguística do Instituto de Tecnologia de Massachussets Noam Chomsky (2) afirma que […] o poder já não está nas mãos dos “comerciantes e fabricantes”, mas de instituições financeiras e multinacionais. O resultado é o mesmo. E essas instituições têm interesse no desenvolvimento chinês. Portanto, se você for, digamos, o presidente do Walmart ou da Dell ou da Hewlett-Packard, estará contentíssimo por poder contar com mão de obra muito barata na China, trabalhando em condições pavorosas e sem normas ambientais. Desde que a China apresente o que chamam de crescimento econômico, está tudo bem”. Pretende-se então adotar as praticas do mercado de trabalho chinês aqui?
Na verdade, para preservar o justo equilíbrio de convivência na contemporaneidade é preciso revisitar as lições do filósofo italiano Norberto Bobbio (3), que assim assinala: ” a efetivação de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana. (..) é que a proteção destes últimos requer uma intervenção ativa do Estado, que não é requerida pela proteção dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização dos serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado, o Estado social (grifamos)”.
Coloca-se nesse contexto, portanto, o papel do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho. E é essa a perspectiva a ser seguida no Brasil, que tem uma Constituição consagradora dos direitos sociais (art. 7º), com uma sociedade extremamente desigual e uma elite resistente a efetivar essa mesma Constituição, insistente em torná-la apenas programática e enunciativa, um “faz de conta” e, quem sabe agora, letra morta, em nome de projetos que privilegiem o acúmulo do capital.
Nesse exato sentido, o interesse na reforma da legislação social é um aspecto que vem sendo capitaneado por quem pode tirar proveito próprio desse discurso e tem representação orgânica no Congresso Nacional. Para a sociedade, entretanto, isto é, para os milhões de trabalhadores (pequenos, médios e até mesmo os mais graduados) não há nenhum consenso sobre tais medidas. A imensa maioria dos brasileiros economicamente ativos, que potencialmente teriam prejuízos quanto a garantias como pagamento de férias, 13º salário, garantia de emprego, FGTS, entre outros direitos, alijados de qualquer discussão sobre a matéria, não estão de acordo com mudanças que lhes sejam prejudiciais. E cresce a pergunta sobre as razões de os parlamentares não atenderem aos reclamamos sociais.
Para justificar o injustificável esses atores constroem o discurso falso do peso da CLT nos custos da produção quando se sabe que não é o trabalho que a encarece, mas sim a carga tributária, a falta de política industrial e de modernização de infraestrutura, entre outros gargalos.
Tentar rebaixar custos do trabalho no Brasil tem sido sinônimo de redução de salários, de trabalho precário e desprotegido, tendo em vista a facilitação do lucro, cujas ações têm sido contidas pela rede de proteção que se pretende enfraquecer (Justiça do Trabalho e Ministério Público do Trabalho).
Notório também os danos de uma política dessa ordem para a economia. Ao comentar os efeitos do aumento da desigualdade social nos Estados Unidos sobre a crise de 2008, Thomas Piketty (4) pontuou: “[…] do meu ponto de vista, não resta dúvida de que o aumento da desigualdade contribuiu para fragilizar o sistema financeiro americano. (..) A alta desigualdade teve como consequência uma quase estagnação do poder de compra das classes populares e médias no Estados Unidos. Daí só poderia resultar o endividamento crescente das famílias menos abastadas, sobretudo considerando que o acesso ao crédito foi ficando cada vez mais fácil […]”.
Em linha diferente de tudo isso, a Agenda 2030, firmada por chefes de Estado e de Governo, assim como Altos Representantes reunidos na sede das Nações Unidas, em Nova York, entre os dias 25 a 27 de setembro de 2015, especialmente no que diz respeito às condições de trabalho, trilha outro caminho.
Assegurar a qualidade de bons empregos como forma de acabar com o flagelo da pobreza no mundo é uma forma de contribuir para um futuro melhor, assinala a Agenda 2030.
Assim, é importante o efetivo comprometimento com a construção desse documento, levantando-se a convicção de que o mundo precisa dar passos imediatos para erradicar a pobreza, ideia que só será concretizada se os países adotarem medidas concretas nesse sentido.
Em síntese de tudo, o que se tem é que o Brasil não pode cair na armadilha de contribuir para o aprofundamento das desigualdades sociais que uma tal reforma propiciaria, já que desregulamentar a legislação trabalhista por instrumentos como a “terceirização”, a “prevalência do negociado sobre o legislado, a reforma previdenciária sem necessidade, além da Emenda Constitucional 95/2016 (resultado da PEC 55/2016, que suprimirá, pelos próximos 20 anos, recursos públicos de saúde e educação), representaria unicamente transferir renda do trabalho para o capital, aumentado a concentração de riqueza em um dos países mais injustos do mundo.
Importante indagar quais serão os custos social e humano de opções que reduzam oportunidades e agridam as garantias sociais ou retrocedam os seus níveis de proteção? Um horizonte muito pior que o vivido nos dias de hoje, ninguém duvida.
O apelo por desregulamentar o Direito do Trabalho, portanto, representa um atraso civilizatório inconteste e, do ponto de vista econômico, um evidente equívoco.
Os direitos sociais não podem ser reduzidos, sob pena de ingressarmos na esdrúxula lógica da tutela aos privilegiados do setor econômico com sacrifício das garantias laborais, fazendo prevalecer o que Zygmunt Bauman, em sua obra “Vida a Crédito”, cunhou ironicamente como sendo o “Estado assistencial para os ricos”.
É fundamental, neste momento crítico, que o Brasil se reafirme diante do mundo como uma nação que, independente de governos, constitucionalmente rejeita a degradação dos direitos sociais e a precarização das condições de trabalho, o que representaria contribuir para o apartheid trabalhista em um dos países mais importantes da economia mundial, mas desigual, repita-se.
Que o Brasil trabalhe para resguardar o bem-estar dos seres humanos. Do contrário, adotará o mesmo regime que tem levado milhões de trabalhadores no mundo à total opressão e indignidade, e, nessa justa medida, o futuro cobrará a conta de cada um.
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(1) Texto atualizado com base em artigo do autor intitulado “O fim da CLT? bom para quem?”, publicado neste Blog em 29/01/2016.
(2) CHOMSKY, Noam. Sistemas de poder. Conversas sobre as revoltas democráticas globais e os novos desafios ao império americano, trad. Luis Carlos Moreira da Silva, Rio de Janeiro: Apicuri, 2013.
(3) BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, apres. Celso Lafer, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.