“Devagar com o andor: a Reforma da Previdência”
O texto a seguir é a primeira parte de artigo de autoria de Maria Rita Manzarra, Juíza Titular da 3ª Vara do Trabalho de Mossoró – RN e diretora de prerrogativas e assuntos jurídicos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
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É sempre difícil, em momentos de crise, identificar mudanças que de fato são necessárias e vitais para uma retomada de crescimento e saída do caos, daquelas que se revestem de verdadeiro oportunismo e que já evidenciam, para quem realmente quer enxergar, uma simples intenção de mudança do “status quo”, sem qualquer laivo de transitoriedade e sem qualquer intenção de reversão quando e se superada a recessão.
O país está em apuros. As crises são das mais diversas ordens: política, econômica, social e moral. Custa a acreditar que em um curto espaço de um ano tenhamos vivido todos estes fatos políticos e econômicos tão distintos e intensos. Definitivamente não será tarefa fácil contar nos livros de História do Brasil o que aconteceu no nosso país em 2016.
E o apagar das luzes deste ano trouxe à baila, ainda, dois pontos há muito debatidos e de extrema importância para a sociedade, mas que, até então, não tinham saído do plano de abstração dos Governos de ontem e de hoje: a reforma da previdência e a reforma trabalhista. Neste primeiro artigo, dedico-me à reforma da previdência.
A reforma previdenciária promovida no ano de 2003 (EC nº 41), à época sob a batuta do então Ministro da Previdência Ricardo Berzoini, foi justificada em razão de um rombo no sistema que, em um prazo não muito distante, comprometeria a concessão de aposentadorias e pensões futuras.
Diversas mudanças foram empreendidas de 2003 para cá, inúmeras regras de transição criadas e, mesmo assim, o sistema continuou (supostamente) deficitário e, utilizando-se deste mesmo argumento, o governo ora em exercício propõe uma nova reforma, com diversas novas regras bem mais gravosas para o segurado, propalando a urgência na sua aprovação, sob pena de se colapsar o regime previdenciário do país.
Se de um lado temos o governo justificando a reforma como condição inafastável para a recuperação do país, de outro assistimos vídeos veiculados pela ANFIP – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, em redes sociais, que noticiam a inexistência de déficit, mas, ao revés, a presença de superávit sucessivo na Seguridade Social nos últimos anos (saldo positivo de R$ 59,9 bilhões em 2006; R$ 72,6 bilhões, em 2007; R$ 64,3 bi, em 2008; R$ 32,7 bi, em 2009; R$ 53,8 bi, em 2010; R$ 75,7 bi, em 2011; R$ 82,7 bi, em 2012; R$ 76,2 bi, em 2013; R$ 53,9 bi, em 2014; R$ 24 bi, em 2015).
A falta de transparência quanto a informações vitais, a falta de diálogo e de participação do segurado em todo este processo que lhe afeta diretamente é, sem dúvida, o que mais propicia a resistência e a rejeição à mudança, sendo deveras difícil defender uma reforma quando não se tem a exata noção de que é necessária a sua existência, especialmente nos drásticos moldes em que proposta.
O desencontro de informações entre o que foi divulgado pelo Ministério do Planejamento (décifit de R$ 243 bi entre novembro de 2015 e outubro de 2016) e o que consta nos vídeos da ANFIP desencadeia confusão e insegurança nos cidadãos, tratando-se, muito provavelmente, de mais uma mudança legislativa que tramitará – e que será sem dúvidas aprovada – à revelia e sob os protestos do povo.
Como dito, faltam explicações claras e simples e, uma vez mais, muda o governo – e as cores do governo – e a sensação é exatamente a mesma. Opta-se pelo caminho mais singelo: cobrar a fatura daquele que sempre aceita a cobrança, ainda que dela não seja o (único) devedor: o povo brasileiro.
Não digo que uma reforma não é necessária. Atrevo-me menos ainda a dizer que o sistema não merece reparos. O que defendo, contudo, é que existem medidas alternativas que poderiam ser promovidas antes de se atingir tão direta e drasticamente o segurado.
O tímido combate à sonegação fiscal já evidencia que o sistema merece sim reformulação. As políticas de isenções e renúncias fiscais, como as concedidas a igrejas e times de futebol, clamam por revisão. A gestão da dívida pública urge ser repensada, assim como a Desvinculação das Receitas da União (DRU) – que autoriza que 30% das receitas de contribuições sociais não precisam mais ser gastas nas áreas de saúde, assistência social ou previdência social- o que parece no mínimo contraditório, afinal, se há o alegado déficit, o que justifica tirar de onde não se tem?
Além destas questões que demandariam atuação prioritária do governo, outras possibilidades emergem como forma de suprir eventuais “rombos” do sistema, como a taxação das grandes fortunas, tributo previsto na Constituição Federal de 1988 e, até hoje, pendente inexplicavelmente de regulamentação. Será que se quer realmente resolver o problema ou apenas encontrar paliativos?
Certo, então, que a falta de transparência e a supressão de debates, especialmente quanto a medidas alternativas, nos impede de chegar a uma conclusão segura acerca do tema e nos traz sinceras dúvidas acerca da “premente necessidade” de alteração das regras previdenciárias atuais nos moldes em que proposto.
Não olvidemos, porém, que a estratégia de dificultar o acesso à informação e de relegar a participação social é reproduzida há vários anos, independentemente da sigla partidária que esteja governando o país, sendo difícil outra conclusão que não a de que, para os governantes, manter o povo na ignorância constitui elemento fulcral para o seu controle.
Não há, portanto, um processo de compreensão, participação e discussão por parte do segurado quanto às mudanças previdenciárias propostas, mas tão somente uma situação de imposição e submissão do indivíduo ao Estado. Perde o Estado Democrático de Direito. Perde o brasileiro. Perde o Brasil.
Em matéria de direito social há que tratar com máxima prudência qualquer reforma que venha a reduzir direitos e agravar situações. Caminhos menos gravosos, se existentes, precisam ser devidamente esgotados, antes de se optar por medidas mais extremadas que atinjam a parte mais vulnerável da relação, o segurado.
O alerta é, sem sombra de dúvida, necessário: devagar com andor, pois, neste caso, somos todos de barro.