“Devagar com o andor: a Reforma Trabalhista”
O texto a seguir é a segunda parte de artigo de autoria de Maria Rita Manzarra, Juíza Titular da 3ª Vara do Trabalho de Mossoró – RN e diretora de prerrogativas e assuntos jurídicos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
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Iniciei o primeiro artigo da saga “Devagar com o andor” tratando da reforma previdenciária e ali já lancei um verdadeiro sinal de alerta quanto às mudanças propostas, clamando pela necessidade de maior amadurecimento do tema e de democratização na sua discussão. (*)
Enalteci, também, o quão delicado (e perigoso) é querer empreender mudanças legislativas em momentos de recessão, vez que as reformas vêm precedidas de pouquíssimo (ou nenhum) debate, despontando como tábua de salvação que, a bem verdade, não se destinam a resolver de fato o problema, mas tão somente camuflá-lo momentamente.
O que dizer, então, da reforma trabalhista, anunciada como presente de Natal aos brasileiros às vésperas dos festejos de 2016? Será mesmo tão positiva quanto difundida? Será que ditas alterações trarão o esperado crescimento econômico e que são fruto de interesses conciliados de patrões e empregados?
Não me alio aos que são radicalmente contra mudanças na legislação trabalhista e que se posicionam contrários a qualquer proposta antes mesmo de conhecê-las a fundo.
Ao revés, cerro fileira ao lado daqueles que diante de um processo de mudança – que realmente se afigura inevitável no Governo atual – opta por tentar dele participar e trazer contribuições, ainda como forma de minimizar danos.
Admito, sem qualquer problema de consciência, que a legislação trabalhista precisa ser modernizada. Certos conceitos e institutos previstos na CLT, em razão da evolução da própria sociedade, urgem ser repensados. Modernização, contudo, não pode ser confundida com precarização. E o retrocesso de direitos sociais não pode ser a tônica das reformas propostas. O que se levou anos, sangue e suor para conquistar, não pode simplesmente ser suplantado sob o argumento de uma recessão sabidamente transitória.
Se a reforma trabalhista é necessária, como dito, mais premente ainda se revela, a meu sentir, a reforma sindical. Vou além: a reformulação do sistema sindical brasileiro – um dos mecanismos autoritários mantidos pela Constituição de 1988 – deveria preceder toda e qualquer discussão acerca da prevalência do negociado sobre o legislado. É inconcebível dar-se primazia ao que é pactuado pela via negocial – em sobreposição ao assegurado em lei -, quando se vivencia, atualmente, situações que beiram o peleguismo sindical, com normas coletivas acordadas que traduzem verdadeira renúncia – e não transação – de direitos do trabalhador.
O (falido) sistema de unicidade sindical vigente –muito mais focado em preservar a contribuição sindical obrigatória do que propriamente atender e traduzir os interesses daqueles a quem deveriam tutelar- mostra, diariamente, a sua fragilidade e evidencia a pouca representatividade que possui, não encontrando ressonância na própria categoria que representa (ou deveria representar).
Neste ponto, importante esclarecer que o direito brasileiro vai na contramão do direito internacional, na medida em que a Convenção nº 87 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, ratificada por mais de cem países no mundo, propugna pela plena liberdade sindical, o que não se coaduna com o sistema de unicidade sindical por aqui adotado.
De outra monta, é de se pontuar que a despeito da Convenção OIT nº 87 não ter sido ratificada pelo Brasil, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais o foi, sendo promulgado o Decreto nº 591/92, que dispôs em seu artigo oitavo, expressamente, sobre o pluralismo sindical, não tendo havido apenas os ajustes necessários no nosso direito interno, optando o Legislativo por fazer tábula rasa de instrumento já incorporado ao ordenamento pátrio.
Se o modelo sindical enfrenta, assim, “problemas de legitimidade” – não funcionando como porta voz dos interesses unitários do grupo – e se revela incapaz de dar às normas coletivas conteúdo jurídico válido e eficaz, transfere-se para o Judiciário Trabalhista a missão de revisar as normas pactuadas coletivamente, declarando-se a nulidade de cláusulas sempre que importarem em prejuízos a apenas uma das partes da relação contratual, afrontando a lei e/ou a Constituição.
Certo, portanto, que se o objetivo desta reforma é evitar a revisão das normas coletivas pelo Judiciário, engessando-se a atividade jurisdicional, optou-se, novamente, pelo caminho mais infeliz e que dificilmente alcançará os efeitos desejados, pois a magistratura trabalhista continuará dispondo de meios para, incidentalmente, afastar a aplicação de leis que entenda inconstitucionais.
É de se lamentar, portanto, a imensa energia e tempo despendidos visando tais resultados e a preciosa janela de oportunidade perdida de se reformar o sistema sindical, de se criarem organizações sindicais efetivamente fortes e confiáveis e de se avançar em temas em que é possível evoluir.
Como já ponderado quanto à reforma previdenciária em artigo pretérito, também a reforma trabalhista deveria ser precedida de maior debate e participação dos agentes diretamente envolvidos. O que se viu, ao revés, foi um anúncio feito pelos governantes que deixou à margem as organizações sindicais de maior projeção, que prontamente emitiram nota esclarecendo não hipotecar qualquer apoio às medidas propostas.
Como dizer, então, que a reforma trabalhista é fruto de um consenso? Quais os agentes efetivamente ouvidos? Os diretamente afetados e que representam os dois lados da relação – capital e trabalho – legitimaram o processo e participaram de forma democrática? Ou será que, a exemplo da reforma da previdência, estamos diante de mais uma proposta de mudança verticalizada a ser imposta obrigatoriamente ao cidadão brasileiro?
Se o momento é de crise, não se deve optar por mudanças radicais, aceleradas, feitas a toque de caixa. Se há recessão, com maior razão as reformas devem ser tratadas com cautela, debatendo-se diretamente com os interessados e oportunizando-se um processo democrático de participação de organizações sindicais de trabalhadores, de empregadores, de entidades representativas da magistratura trabalhista, do ministério publico do trabalho, da advocacia trabalhista e de auditores do trabalho, até como forma de legitimar o que é proposto.
Não é através de reformas drásticas e unilaterais, que modificam e fragilizam conquistas históricas, que se encontrará a solução para a crise. Não é onerando apenas um lado da relação que se obterá o equilíbrio desejável. Ao revés, poder-se-á gerar uma crise ainda maior e uma inquietação popular sem precedentes. Não se pode focar no hoje e comprometer o amanhã de forma, quiçá, irreversível.
O objeto destas reformas –previdenciária e trabalhista–, não nos esqueçamos, são vidas. São seres humanos. E com estes, zelo nunca é demais. O processo de reforma precisa ser amadurecido, democrático e acontecer de forma gradual. É como dizem: devagar com o andor. Os direitos sociais, hoje, são tão ou mais frágeis que o santo de barro.
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