Desvio de finalidade e nomeação de Moreira Franco
Sob o título “Desvio de finalidade em ato de nomeação e remédios processuais”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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I – O CASO DA NOMEAÇÃO DO MINISTRO MOREIRA FRANCO
Fala-se que o ato de nomeação do ministro Moreira Franco teria sido em desvio de finalidade. Foi noticiado que tal ato administrativo se deu para que ele pudesse ter a prerrogativa de foro de ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
Noticiou o site de “O Globo” que o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou informações ao presidente Michel Temer sobre a nomeação de Moreira Franco para o cargo de ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República.
PSOL e Rede apresentaram ações no STF pedindo a anulação da nomeação, por entender que Moreira foi indicado para ganhar foro privilegiado. Ele é um dos citados na delação da Odebrecht, que faz parte da Operação Lava-Jato. O ministro Celso de Mello deu um prazo de 24 horas para que Temer se manifeste.
“Entendo, por razões de prudência, e apenas para efeito de apreciação do pedido cautelar, que se impõe ouvir, previamente, o Senhor Presidente da República, para que se manifeste”, escreveu o ministro.
II – DESVIO DE FINALIDADE
Um ato praticado por desvio de finalidade não se sustenta. Se houve desvio de finalidade o ato é nulo, sem qualquer efeito jurídico.
Repito, na íntegra, a lição de Miguel Seabra Fagundes (O controle dos atos administrativos, 2ª edição, pág. 89 e 90), assim disposta: “A atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração Pública dele se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.”
Prossegue o eminente administrativista, que tantas lições deixou entre nós, alertando que se a lei previu que o ato fosse praticado visando a certa finalidade, mas a autoridade o praticou de forma diversa, há um desvio de finalidade.
Na doutrina, aliás, do que se tem de Roger Bonnard, as opiniões convergem no sentido de que, a propósito da finalidade, não existe jamais para a Administração um poder discricionário. Assim não lhe é deixado o poder de livre apreciação quanto ao fim a alcançar. Isso porque este será sempre imposto pelas leis e regulamentos. E adito: pela Constituição, que, no artigo 37, estabelece, impõe, respeito à legalidade, moralidade, impessoalidade, dentre outros princípios magnos que devem ser seguidos pela Constituição. A literalidade do texto é mais que evidente.
Há no ato administrativo, para sua higidez e validade, um fim legal a considerar.
Marcelo Caetano (Manual de direito administrativo, pág. 507) distinguia os desígnios pessoais, os cálculos ambiciosos, as previsões que o agente faz de si para si, no momento em que se determina a exprimir a vontade administrativa, sem repercussão positivamente exteriorizada, na prática do ato, daqueles que se refletem de modo objetivo na sua prática, vindo a desvirtuá-lo em sua finalidade objetiva.
O agente público não pode usar de seus motivos pessoais para atingir fins outros através de um ato administrativo.
III – AÇÃO POPULAR, MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO E ADPF
Mas, para isso, será necessário que, em via de ação popular, o cidadão, legitimado extraordinário, que fala em nome da sociedade, em primeira instância, prove, tem o ônus de provar, que houve tal vício no ato administrativo de nomeação. Sabe-se que o cidadão pode ajuizar ação popular objetivando anular ato administrativo que seja viciado por ilegalidade. Ademais, um ato administrativo que afronta o princípio da moralidade administrativa afronta a Constituição.
Penso que a situação do ministro Moreira Franco é diferente da do ex-presidente Lula quando foi nomeado ministro-chefe da Casa Civil da então presidente Dilma. Naquela ocasião, o ex-presidente já era investigado formalmente pela Polícia Federal e, 12 dias antes, havia sido levado coercitivamente para depor.
Como ficou revelado nas conversas telefônicas, havia o receio de seus companheiros de que fosse preso a qualquer momento, caindo no juízo de Sergio Moro em Curitiba. O ministro Moreira, apesar de ter sido citado em algumas delações que vazaram para a imprensa, não tem nenhuma acusação formal ainda.
Ademais em mandado de segurança é essencial o direito líquido e certo. Se não bastasse deve ser comprovada a flagrante ilegalidade no ato, pois a nomeação e posse são atos administrativos discricionários, onde o mérito foge à apreciação do Poder Judiciário, por razões de conveniência e oportunidade. Será necessário, outrossim, comprovar que o ato foge a razoabilidade e a proporcionalidade para imputar vício no mérito do ato administrativo.
Lembre-se que o direito líquido e certo é aquele que pode ser demonstrado de plano mediante prova pré-constituída, sem a necessidade de dilação probatória. Data vênia de opinião contrária, o caso exige a necessária dilação probatória que extrapola a prova documental. Daí porque o mandado de segurança não se adequa à hipótese.
Sabe-se que o ministro Gilmar Mendes suspendeu a nomeação do ex-presidente para a Casa Civil e decidiu que a investigação do petista deve ficar com o juiz federal Sergio Moro, responsável pela Lava Jato na primeira instância
O mandado de segurança coletivo é via inadequada para tal análise probatória. Ademais, os partidos políticos não têm legitimidade para tal.
Quanto aos partidos políticos, razão assiste ainda a Calmon de Passos (Mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e habeas data, 1989, pág. 14) quando, em sede de análise da legitimação para o mandado de segurança, considera que essas entidades, que são instituições de âmbito nacional, desempenhando uma função supletiva de particular alcance, somente poderão agir em juízo na hipótese de inexistência ou falta de interesse das entidades representativas de indivíduos.
No julgamento do MS 197/DF, Relator para o acórdão o Ministro Garcia Vieira, DJ de 20 de agosto de 1990, ficou consignado pelo Superior Tribunal de Justiça que quando a Constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os seus filiados e em questões políticas, ainda assim, quando autorizado por Lei ou pelo Estatuto. Sendo assim não está legitimado o partido político a ajuizar mandado de segurança coletivo com relação a pessoas a ele não filiadas.
O mandado de segurança coletivo tem por objeto a defesa dos mesmos direitos que podem ser objeto do mandado de segurança individual, porém direcionado à defesa dos interesses coletivos em sentido amplo, englobando os direitos coletivos em sentido estrito, os interesses individuais homogêneos e os interesses difusos, contra ato ou omissão ilegais ou com abuso de poder de autoridade, desde que presentes os atributos da liquidez e certeza.
Na ADIMC 1096 -4, o Ministro Celso de Mello entendeu que os partidos políticos com representação no Congresso Nacional acham-se incluídos, para o efeito da ativação da jurisdição constitucional concentrada do Supremo Tribunal Federal no rol dos legitimados ativos.
Para tanto, há um verdadeiro dever-poder de agir por parte dos partidos políticos, entidades com natureza jurídica de direito privado, uma vez que eles têm um papel decisivo na concretização do Estado Democrático de Direito.
Alexandre de Moraes(Lei transformou partidos políticos em meras associações), in Consultor Jurídico, assim se pronunciou:
“Cercear essa legitimação somente para seus próprios interesses ou de seus filiados é retirar dos partidos políticos a característica de essencialidade em um estado democrático de Direito e transformá-lo em mera associação privada, o que, certamente, não foi a intenção do legislador constituinte.
Não foi outro o entendimento do Supremo Tribunal Federal, como bem salientado pela ministra Ellen Gracie, ao destacar que “se o legislador constitucional dividiu os legitimados para a impetração do mandado de segurança coletivo em duas alíneas, e empregou somente com relação à organização sindical, à entidade de classe e à associação legalmente constituída a expressão em defesa dos interesses de seus membros ou associados é porque não quis criar esta restrição aos partidos políticos.
Isso significa dizer que está reconhecendo na Constituição o dever do partido político de zelar pelos interesses coletivos, independente de estarem relacionados a seus filiados”. Além disso, afirma “não haver limitações materiais ao uso deste instituto por agremiações partidárias, à semelhança do que ocorre na legitimação para propor ações declaratórias de inconstitucionalidade” e conclui que “tudo o que foi dito a respeito da legitimação dos partidos políticos na ação direta de inconstitucionalidade pode ser aplicado ao mandado de segurança coletivo” (2ª T, RE 196.184/AM; e ainda, Pleno, MS 24.394-5/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).”
Com o advento da Lei 12.016/09, que passou a disciplinar a matéria, a questão quanto à exigibilidade de pertinência temática, a qual havia sido pacificada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do recurso extraordinário nº. 196.184/AM, ganha novo destaque, uma vez que o caput do art. 21 , traz a ideia de limitação da atuação dos partidos políticos aos casos de defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária.
O legislador adotou antigo posicionamento restritivo do Superior Tribunal de Justiça (2ª T, RMS 1348/MA, Rel. Min. Américo Luz), flexibilizado mais recentemente (STJ, 2ª T, RMS 15311/PR, Rel. Min. Eliana Calmon), que afirmava “quando a Constituição autoriza um partido político a impetrar mandado de segurança coletivo, só pode ser no sentido de defender os seus filiados e em questões políticas, ainda assim, quando autorizado por lei ou pelo estatuto. Impossibilidade de dar a um partido político legitimidade para vir a juízo defender 50 milhões de aposentados, que não são, em sua totalidade, filiados ao partido e que não autorizaram o mesmo a impetrar mandado de segurança em nome deles.” (1ª Seção, MS 197/DF, Rel. Min. Garcia Vieira).
Em razão disso, dir-se-ia que o Supremo Tribunal Federal poderia, para o caso, extinguir os mandados de segurança ajuizados, sem julgamento do mérito, por falta de interesse de agir, por inadequação da via eleita e ainda ilegitimidade ad causam.
A matéria, se for o caso, deve ser objeto de discussão em ações populares, ajuizadas perante a primeira instância, cabendo ao cidadão o ônus de comprovar a ilegalidade e imoralidade do ato atacado.
Não cabe para o caso o ajuizamento de ações de descumprimento de preceito fundamental cuja natureza é sabidamente subsidiária.
Como se sabe, consoante o site do Supremo Tribunal Federal de 9 de fevereiro de 2017, “o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal (STF), julgou inviável a tramitação das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 390 e 391, apresentadas, respectivamente, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Ao indeferir liminarmente as petições iniciais, o ministro destacou que a ADPF não se mostra o instrumento processual apto a questionar o caso em questão”.
Como ali se noticiou as ações questionam decreto presidencial que nomeou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República – ato de nomeação que ficou suspenso pelo STF, em razão da decisão liminar do ministro Gilmar Mendes nos Mandados de Segurança (MS) 34070 e 3407.
Portanto é possível que os mandados de segurança ajuizados, em que se procura atacar a posse do ministro Moreira Franco, sejam extintos por carência de ação, seja por falta de legitimidade ativa ou seja por inadequação da via eleita, pois o mandado de segurança, seja individual ou coletivo, exige prova pré-constituída e não sim