Justiça do Trabalho em um país socialmente injusto
Sob o título “Justiça do Trabalho e desigualdade“, o artigo a seguir é de autoria de Germano Siqueira, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
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Tramita no Congresso Nacional a chamada reforma trabalhista (Projeto de Lei 6787/2016) que, entre outras finalidades, adota a prevalência do negociado sobre legislado, fora dos limites constitucionais. A referida reforma tem suscitado inúmeros debates, alguns deles com o claro objetivo de desqualificar a instituição Justiça do Trabalho e o papel histórico da CLT.
Na visão desses “debatedores”, a referida reforma propiciaria mais postos de trabalho, o empoderamento dos sindicatos, ganhos de produtividade, maior segurança jurídica e a consequente redução do número de processos no Judiciário trabalhista.
Será isso verdade? As críticas procedem? A resposta é negativa.
É importante refutar desde logo a assertiva segundo a qual a Justiça do Trabalho e a CLT sejam responsáveis pelo desemprego em nosso país.
A CLT, com várias alterações ao longo desse tempo, está em vigor há 70 anos e os índices de desemprego, com suas curvas ascendentes ou descendentes, de modo algum se relaciona com o conteúdo de suas normas e dos direitos e deveres que estabelecem. O que talvez muitos não saibam é que, das normas originariamente editadas na CLT (900 artigos, aproximadamente), apenas pouco mais de 250 permanecem com a mesma redação.
Na verdade, como afirma Paul Krugman “a causa do desemprego duradouro decorre de eventos macroeconômicos”. Foi assim na crise americana de 2008, em que a taxa de desemprego nos EUA chegou a 10%, e assim está sendo no Brasil, também por desvios da mesma ordem.
Fato é que agora opta-se em definitivo pelo enfraquecimento da legislação social e por medidas que agravarão o empobrecimento dos trabalhadores. Um claro erro, na mesma medida dos erros de diagnóstico que colocam em pauta uma desastrosa reforma da Previdência, que imporá idades excessivas para aposentadoria de homens e mulheres e a obrigatoriedade de trabalhar ininterruptamente de 16 aos 65 anos para obter aposentadoria integral, injustiças cometidas principalmente contra a população mais carente; antecedida pela chamada PEC do teto de gastos (a PEC da recessão), que congela qualquer possibilidade de crescimento do país pelos próximos 20 anos, nas suas áreas essenciais.
A Justiça do Trabalho, nesse contexto, tem atuado continuamente na conciliação e na solução das demandas que lhe são apresentadas, sofrendo em sua estrutura os efeitos da crise, pelo aumento da movimentação processual nas Varas e nos Tribunais, não podendo jamais ser apontada como responsável pela “quebra” de empresas. Isso seria o mesmo, aliás, que repudiar outros ramos judiciários pela falência de conglomerados industriais apanhados em atos de corrupção ativa nos últimos anos.
Muito menos se pode atribuir responsabilidade à Justiça do Trabalho pelo problema de produtividade nas empresas nacionais. Nesse ponto, sabe-se perfeitamente que essa efetiva dificuldade está relacionada com baixo investimento em educação, em formação, treinamento e infraestrutura, além dos aspectos da legislação tributária, inclusive para evitar a guerra fiscal interna, que tem aniquilado parques fabris em alguns estados.
Os reais problemas do Brasil passam pela falta de políticas fiscais estratégicas para a indústria e para as pequenas e médias empresas, que apostem no fortalecimento de um mercado consumidor robustecido, onde se insira o trabalhador bem remunerado. Temas esses nem de longe tocados como prioridades pelo Governo, assim como nenhuma medida no sentido de deitar um olhar especial sobre a incomum lucratividade do sistema financeiro no Brasil e sobre os elementos constitutivos da dívida. Essa última que consome 42,43% dos recursos do orçamento da União com pagamentos de juros e amortizações, à base de uma taxa de juros que só existe no Brasil, uma anomalia que sacrifica a população e segmentos produtivos, com aptidão de causar danos severos, até mesmo o fechamento de empresas. Sobre tais assuntos paira um silêncio ensurdecedor.
Não há nenhuma cobrança efetiva sobre esses pontos que, a rigor, são decisivos para o crescimento Brasil. Perde-se a discussão em questionamentos sem muitas vezes irrelevantes do ponto de vista dos reais problemas. E é exatamente isso que se faz ao se dizer (com informações desvirtuadas) que a Justiça do Trabalho tem um número elevado de processos, maior que em qualquer lugar do mundo.
A falta de contextualização precisa ser corrigida para dizer que o fenômeno indesejável da judicialização expansiva não é característica apenas o Judiciário trabalhista, mas do Judiciário brasileiro, fruto da ação de quem descumpre obrigações, e não de quem teria um estranho gosto de demandar.
Conforme dados do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Justiça do Trabalho recebeu, em 2015, 2,6 milhões de casos (evolui para mais de 3 milhões em 2016) e tem 5 milhões de processos pendentes. Já a quantidade de processos na Justiça Estadual, é muito maior, chegando a 18,9 milhões de casos novos e a 59 milhões de casos pendentes. Na Justiça Federal, por sua vez, existem 1,8 milhões de casos novos e 9 milhões de casos pendentes.
Verifica-se desse comparativo, como fator positivo, que a Justiça do Trabalho tem uma taxa de resolutividade de processos muito maior. Além disso, a alta litigiosidade ocorre de forma sistêmica, fruto da conduta de quem se utiliza do sistema para frustrar o direito de outrem, e também de uma lei processual ainda marcada pelo individualismo jurídico-processual, que rejeitou a coletivização de ações –vide o veto ao art.333 do NCPC. (1)
A lista dos grandes devedores trabalhistas (2) e dos grandes litigantes judiciais (3) –essa atualizada a última vez pelo CNJ em 2012– indica o perfil do uso da máquina judiciária. E não são os trabalhadores e os cidadãos mais desprotegidos os interessados no prolongamento do litígio.
É ainda importante assinalar, para refutar a grosseira ideia de que o trabalhador postula apenas por um capricho que, na Justiça do Trabalho, as principais demandas assentam-se em três grandes núcleos de pedidos (4): 1º pagamento de verbas rescisórias (que reponde por 4,5 milhões de pedidos) ; 2º jornada de trabalho (com 1,6 milhões de pedidos);e 3º responsabilidade civil do empregador (1 milhão de pedidos). Como visto, é a falta do pagamento do essencial direito de ver quitada a rescisão do contrato de trabalho que impulsiona a imensa maioria dos pleitos levados ao Judiciário Trabalhista.
E ainda cabe um parêntese. No dia 9 de março, de forma desrespeitosa, o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, ao dizer que a Justiça do Trabalho não deveria existir, alegou que suas decisões sobre gorjetas teriam “quebrado” o sistema de hotéis, bares e restaurantes no Rio de Janeiro. Os pedidos referentes a essa matéria, em todo o Brasil, somam menos de 5.000, sem nenhuma potencialidade de causar danos a qualquer estrutura produtiva.
Esse episódio demonstra que alguns parlamentares exercem seus cargos apenas como porta-vozes de interesses particulares, em uma atuação tipicamente patrimonialista, assim considerada a conduta que consiste em não distinguir entre o público e o privado no exercício de cargos públicos. Em outras palavras, a atitude de simplesmente esquecer o que preceitua o § único do art. 1º da Constituição (Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente) para, ao contrário, cumprir o mandato em nome de interesses próprios, de familiares, de amigos ou de financiadores eleitorais, sem dedicar atenção àqueles que os elegeram.
Abandonar a capacidade de abstração para velar interesse público é um péssimo sinal.
Voltando ao raciocínio anterior, fruto dessas ações propostas na Justiça do Trabalho são realizados pagamentos anuais aos trabalhadores da ordem média de 15 a 20 bilhões, conforme estatísticas periodicamente publicadas pelo Trinunal Superior do Trabalho (TST). Para a Previdência Social, são recolhidos em torno de 2 bilhões de reais e, para o Tesouro, em multas e imposto de renda, mais 2,8 bilhões de reais.
As estatísticas também apontam que, das 2,6 milhões de novas ações, apenas 25,3% tramitaram pelo rito sumaríssimo (causas de até 40 salários), o que totaliza nesse grupo 18,9 bilhões em valores dos pedidos. As outras 75% (cerca de 1,9 milhão de ações), tramitaram pelo rito ordinário, e chegam, no mínimo, a 59 bilhões de reais, em valores referentes à repercussão econômica do pedido. Tudo somado, tem-se um impacto geral dos pleitos de aproximadamente 77 bilhões.
Outro ponto que merece atenção nos argumentos que vem sendo utilizados para legitimar a reforma trabalhista nos moldes do PL 6787/2016 é o alegado elevado orçamento da Justiça do Trabalho. Aqui, tenta-se vender a ideia subliminar de justificar e estimular a prevalência de acordos sobre a lei como promessa (falsa) de que tal medida seria de interesse econômico/fiscal.
O orçamento da Justiça do Trabalho para 2017 está na casa de 20 bilhões de reais, destinado a custear todo esse ramo: os 24 Tribunais Regionais do Trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Apenas a título de comparação, apenas os orçamentos de três Tribunais de Justiça brasileiros (TJSP, TJMG e TJRJ) equivale exatamente ao de toda a Justiça do Trabalho brasileira.
Não se trata, portanto, do maior orçamento do Poder Judiciário nacional, mas de um orçamento criteriosamente trabalhado, inclusive para superar o boicote que lhe foi imposto no ano de 2016, e para dar funcionamento a um ramo fundamental para o país e para a sociedade. É preciso não levar a população ao engano.
Recusar o papel da Justiça do Trabalho (ou a sua existência) em um país socialmente injusto como o Brasil, que ainda sofre, por exemplo, com a chaga do trabalho análogo à escravidão (cuja lista pretendeu-se omitir até poucos dias atrás); com a acentuada desigualdade no mercado de trabalho da mulher; com as marcas do trabalho infantil; e com elevados números de acidentes de trabalho é fechar os olhos para qualquer perspectiva de comprometimento com uma sociedade menos desigual (art.3º III CF) e com a contínua construção de uma sociedade cidadã e valorizadora do trabalho humano (art.1º, I e IV CF) e que, nessa medida, deve estimular o papel da livre iniciativa, sem os quais o projeto de bem-estar social, consagrado na Constituição de 1988, seria ilegitimamente desmontado.
À Justiça do Trabalho destina-se o papel de valorizar esses princípios constitucionais e fazer valer as garantias de equilíbrio asseguradas em seu texto. Só assim será possível contribuir para aquilo que a Constituição Federal prevê para o país: a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (art.3º,I, CF).
Que todos possam se dar conta dessa realidade, cumprindo o papel que lhes é destinado, para que não se cometa o erro de transformar nosso país em uma plutocracia.