Lava Jato e o absurdo crime de hermenêutica
Sob o título “A hipérbole do absurdo“, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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Rui Barbosa chamava de hipérbole do absurdo o crime de hermenêutica.
Essa expressão é colhida de defesa que fez Rui Barbosa patrocinando o juiz de Direito do Rio Grande do Sul, Alcides de Mendonça Lima, pai do conhecido processualista de mesmo nome.
Rui Barbosa, em célebre panfleto “O Jury e a Responsabilidade Penal dos Juizes” sustentava a impossibilidade de aplicar pena a magistrados em virtude de seu entendimento interpretativo da lei, ou seja, em razão da hermenêutica, ainda quando a punição viesse a ser decretada no âmbito do tribunal a que o juiz estivesse vinculado e mesmo que a imposição da lei inquinada de inconstitucional fosse pretendida e promovida pelo chefe de Estado.
Tratava-se então da Lei nº. 10/1895 do RGS e o julgamento de primeiro grau ocorreu em 1896. O Supremo julgou recursos duas vezes, em 1897 e 1899.
Isso foi bem historiado no artigo “O sinistro retorno do crime de hermenêutica”, publicado por Luiz Fernando Cabeda. Essa forma de ver as decisões judiciais é uma janela aberta para o castigo.
Ora, o juiz não pode ter medo de desagradar.
Dito isso, voltemo-nos ao presente com a surrealista proposta de criminalizar o juiz por abuso de autoridade caso tenha sua posição decisória revertida pelo Tribunal ad quem.
O projeto de lei 280/16 trata de inovações quanto aos crimes de abuso de autoridade. Tão logo seu conteúdo foi difundido, pela imprensa, percebeu-se mais uma, dentre inúmeras outras, tentativa de nossos congressistas usarem a mens legis em seu favor, já mirando ofuscar e, porque não, retirar toda a eficácia da operação Lava Jato.
Isso porque o artigo 9º, parágrafo único, inciso II deste projeto de lei dispõe que incorre nas penas do caput – de 01 (um) a 04 (quatro) anos de detenção e multa -, “quem deixa de conceder ao preso liberdade provisória, com ou sem fiança, quando assim admitir a lei e estiverem inequivocamente presentes seus requisitos”.
Como disse Eudes Quintino de Oliveira Júnior (O Congresso Nacional e o crime de hermenêutica, in Migalhas, 6.4.17), o brocardo jurídico naha mihi factum dabo tibi jus fica afastado, para que a interpretação do juiz de Direito, sobre a manutenção da prisão de um acusado, sofra influência de um comando legal intimidativo. Ou seja, a função inerente ao magistrado, que é justamente a de interpretar e aplicar as leis de nosso país, de acordo com o resultado desta interpretação, pode ser escandalosamente criminalizada, a fim de atender, como era de se esperar, os anseios mais espúrios de nosso sombrio Poder Legislativo.
Noticiou-se que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entregou ao Congresso uma proposta alternativa do Ministério Público Federal ao projeto de lei sobre abuso de autoridade que tramita no Senado.
A tentativa dele é evitar que juízes e investigadores sejam criminalizados por divergências na interpretação da lei. Integrantes da Lava Jato avaliam que o texto do relator Roberto Requião (PMDB-PR) para o projeto permite que haja punição para o chamado “crime de hermenêutica”, ou de interpretação, o que poderia inviabilizar investigações. O texto de Requião deve começar a ser analisado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Na proposta apresentada, o procurador-geral da República apresenta alteração no projeto. A mudança tem em mente que as divergências de interpretações não sejam encaradas como abuso de autoridade e, portanto, passíveis de punição.
Embora a questão da interpretação seja o cerne da divergência entre as propostas, ela não é a única. Diferentemente do Ministério Público, o Senado propõe, por exemplo, punição para quem decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado “manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”. As conduções coercitivas ganharam destaque depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi levado forçadamente para depor na Lava Jato.
O magistrado não pode ser coagido ou punido por suas decisões e, agindo dentro dos limites legais, tem ampla autonomia na prestação jurisdicional. O ministro Luiz Fux defendeu esse posicionamento no seu voto em uma representação contra uma desembargadora do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região e o seu entendimento foi acompanhado, por unanimidade, pelos demais ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A inconstitucionalidade de inserção do chamada crime de hermenêutica ou de interpretação é de tamanha clarividência, pois impõe mudanças em cláusula pétrea, que diz respeito a independência do Poder Judiciário, que não pode ser um mero anexo dos outros poderes.
Como lembrou Gabriel Velloso (Mais uma ameaça à independência judicial), nosso poder judiciário moderno está bem mais próximo da concepção de Alexander Hamilton, cujas preocupações com a preservação da independência e autonomia do Poder Judiciário prenunciam embates que seguem até a atualidade.
Após concluir que “o Poder Judiciário é sem questão alguma o mais fraco dos três” e, “por isso mesmo, não pode atacar nenhum dos dois outros com boa esperança de resultado”, “é necessário dar-lhe todos os meios possíveis para que possa se defender dos outros dois”. “Pela sua fraqueza natural, o Poder Judiciário está sempre em risco de ser intimidado, subjugado ou seduzido ela influência dos poderes rivais”. Conclui Hamilton: “A independência integral das cortes de justiça é particularmente essencial em uma Constituição limitada.”
O projeto discutido no Senado Federal com inserção do absurdo crime de hermenêutica é mais uma prova verdadeira de que as elites estão incomodadas com as investigações realizadas pelo Ministério Público, Polícia Federal e que são objeto de apreciação pelo Judiciário.