Nossa Justiça é a mais cara? Juiz diz que não.
Sob o título “Judiciário mais caro do mundo? Falácia.“, o artigo a seguir é de autoria de André Alexandre Happke, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Santa Catarina na Comarca de Chapecó. (*)
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Comecemos com uma fatia grande: 33% (um terço) dos processos em trâmite no país são de cobrança de impostos sonegados (ou indevidamente em cobrança). No Brasil, eram 25 milhões de Execuções Fiscais em trâmite na edição 2016 do relatório “Justiça Em Números” (do Conselho Nacional de Justiça).
Um terço é canalizado para o próprio Poder Executivo.
Isso é despesa do Judiciário? Não, é despesa do Poder Executivo (do Federal, do Estadual, dos Municipais). É uma “cobrança” financiada pelo Poder Judiciário, e entra como despesa do orçamento do Judiciário, pois para isso o Executivo não paga custas/despesas processuais.
Em vários países essa cobrança é feita pelo próprio executivo e apenas o que seriam os nossos embargos do executado é que são decididos em processos judiciais.
Já se tenta implantar este sistema aqui faz um bom tempo, mas não avançou ainda o suficiente.
Temos uma parcela grande (mas não a segunda maior) de processos criminais. Nesses processos, como a maior parte dos réus é “pobre”, as custas/despesas do processo que eles sempre foram condenados a pagar ao final praticamente nunca são recebidas, afinal, já se tira deles inclusive a liberdade, bens para garantir o débito geralmente não existem. É um gasto a fundo perdido, mas em prol da segurança da população.
Outra parcela significativa de processos é de quem pode pagar pela despesa/custas. Todavia o valor que paga não é suficiente para cobrir o custo do serviço utilizado, ou seja, mesmo quando um banco, seguradora, concessionária de serviço público litigam e pagam custas integrais, nem toda a despesa é repassada, pelo valor das custas que é praticado (a tabela de Santa Catarina é uma das menores em valores do Brasil), assim, nesses casos, uma boa parte do valor necessário para cobrar as contas daí derivadas vai também para o orçamento do Judiciário.
As duas parcelas acima são significativas em custo (processos criminais e cobranças para grandes empreendimentos), a maior delas é seguramente a primeira (cobrança de impostos). A segunda parcela em relevância, por outro lado, é uma mistura de quem poderia pagar e quem não tem condições de pagar, mas, efetivamente não paga porque afirma insuficiência e pede para litigar sem custear o serviço.
Pedem Assistência Judiciária (Justiça Gratuita) merecendo ou não tal benefício, e resolvem seus litígios de cunho social (família, infância entre outros) ou meramente patrimonial (cobrar um cheque, uma conta de loja, uma nota promissória, um acidente de trânsito) sem pagar diretamente um centavo sequer pelo serviço (pagam ínfima parcela, indiretamente, dividindo sua despesa com todos que pagam impostos).
Há comarcas em Santa Catarina que se aproximam de 90% os processos tramitam sob esse regime de “gratuidade”, nas demais o número é bastante elevado. Isso está ligado à cultura de concessão mediante mera afirmação da necessidade, tema enfrentado pelo Defensor Público Geral do Estado (Ralf Zimmer Júnior) recentemente, em seu texto “Mito da Gratuidade da Justiça”.
Por fim, fossem poucos os processos, se poderia perguntar se então o serviço prestado não está inadequadamente remunerando os trabalhadores envolvidos (servidores, magistrados), mas o que se vê é o Poder Judiciário proporcionalmente com mais processos em todo o planeta.
Tanto que os juízes brasileiros são os mais produtivos do mundo (o que é fato, e já foi abordado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”) e isso não é porque são “especiais”, mas é porque sofrem a maior carga de trabalho quantitativa dentre outros Juízes, sem paralelo ou igual na Terra, e fazem o que podem, o que conseguem, à custa de sua saúde, da convivência familiar e todo o mais (sobre isso excelente matéria da revista “Viver Brasil” divulgada no site do Professor Medina, “Juízes estão doentes e com medo”).
Somo aqui nesse esforço sobrehumano os servidores da Justiça, também premidos por metas e toda sorte de dificuldades.
Não é demais lembrar que o Brasil tem mais faculdades de Direito do que o resto do mundo todo somado (tema abordado por Vladimir Passos de Freitas à revista “Consultor Jurídico”), o que faz também com que haja um elevado número de advogados.
Segundo o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina, Paulo Brincas, somos um dos países com mais advogados per capita do mundo, o que confirma o resultado de tantos cursos abertos.
Com o custo total de R$ 79,2 bilhões de reais em 2015 (1,3% do PIB), o Conselho Nacional de Justiça concluiu que o custo por habitante foi de R$ 387,56 no ano. O relatório ainda mostra que a Justiça dos Estados tramita 80% de todos os processos, embora custe apenas 56,4% das despesas antes referidas. Ou seja, cuidando de 80% dos processos, o custo por habitante da Justiça Estadual é de R$ 218,58/ano.
Outro número que se pode ponderar é que se dividindo o “gasto da Justiça” pelo número de processos em trâmite (74 milhões ao final de 2015), chega-se a um custo de R$ 1.070,00 por processo em trâmite.
É importante considerar que esse número é impreciso, pois não são apenas os processos “em trâmite” que tramitam (!), o número de processos arquivados que precisa ser procurado e consultado, e trabalhado, é bastante significativo, dezenas de milhares apenas em Santa Catarina. O custo efetivo por processo, portanto, é menor do que esse de R$ 1.070,00.
Para reflexão que fica ao final, repiso dois números. Com o gigantismo da estrutura necessária, à tramitação do maior Poder Judiciário do mundo, seja em estrutura, seja em trabalho proporcionais, com uma inesgotável e crescente demanda, fundada nas relações complexas dos cidadãos, estimulada por uma cultura de levar tudo a litígio, em prejuízo da busca primeira de uma boa conciliação ou mediação, e frente a um oceano de Profissionais do Direito buscando se colocar em suas carreiras e produzir trabalho (processos), ainda assim, o brasileiro investe de todo o seu ano, R$ 387,56 per capita e o custo geral do serviço prestado por processo é de R$ 1.070,00.
É de registrar que a maior parte da despesa ainda é com pessoal, justamente porque são necessários seres humanos para trabalhar com esse tipo de serviço. É necessária análise humana. As atividades burocráticas estão se extinguindo aos poucos com as novas ferramentas de processo digital, mas restará a necessidade de ser humano para analisar o caso de outros seres humanos.
Aqui temos um horizonte de possível redirecionamento de quadro de pessoal dessas atividades que não são de análise, mediação e conciliação.
Falar em reduzir o quadro é difícil ainda, pois para todo esse manancial de processos há um déficit considerável
de pessoas disponíveis, que já está sendo amenizado pelas novas tecnologias, mas talvez não seja completamente absorvida essa falta de pessoas. Espera-se que seja, e que possa haver redução no quadro geral, mas é difícil propor ou desenhar isso frente ao crescimento exponencial de novos processos.
Reduza-se a utilização do Sistema de Justiça, teremos um Judiciário mais barato. A questão é se isso é que é a solução.
Há sem dúvida ineficiências em todo esse contexto, derivadas de causas internas e também externas, e inúmeras oportunidades de melhora. Quem acompanha o dia a dia de Gestão Judiciária percebe que há um aprimoramento que está constante, sofre com os percalços recentes de queda de arrecadação com limitação de gastos, mas que está buscando e encontrando soluções estratégicas ao longo do tempo para fazer frente ao serviço que lhe demanda a população.
Isso, todavia, é tema para um próximo texto.
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(*) O autor é Mestre em Ciência Jurídica. Docente. [ http://lattes.cnpq.br/1169132396539945 ]
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