O presidente e o crime de responsabilidade
O artigo a seguir, sob o título “Crime de responsabilidade cometido pelo presidente da República“, é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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Relatou o site do “Globo” uma delação como jamais foi feita na Lava Jato. Nela, o presidente Michel Temer foi gravado em um diálogo embaraçoso. Diante de Joesley Batista, Temer indicou o deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR) para resolver um assunto da J&F (holding que controla a JBS).
Posteriormente, Rocha Loures foi filmado recebendo uma mala com R$ 500 mil enviados por Joesley. Temer também ouviu do empresário que estava dando a Eduardo Cunha e ao operador Lúcio Funaro uma mesada na prisão para ficarem calados. Diante da informação, Temer incentivou: “Tem que manter isso, viu?”.
Aécio Neves foi gravado pedindo R$ 2 milhões a Joesley. O dinheiro foi entregue a um primo do presidente do PSDB, numa cena devidamente filmada pela Polícia Federal. A PF rastreou o caminho dos reais. Descobriu que eles foram depositados numa empresa do senador Zeze Perrella (PSDB-MG).
Joesley relatou também que Guido Mantega era o seu contato com o PT. Era com o ex-ministro da Fazenda de Lula e Dilma Rousseff que o dinheiro de propina era negociado para ser distribuído aos petistas e aliados. Mantega também operava os interesses da JBS no BNDE
Poder-se-ia pensar em requerimento de impeachment do presidente da República?
Creio que sim, pois a matéria deve ser averiguada em todas as suas circunstâncias, sendo caso de apuração dos fatos e do envolvimento do presidente da República por crime comum cometido no exercício de seu mandato com nexo com o mandato.
Registra-se que, no Brasil, o impeachment foi consagrado na Constituição de 1824.
Cabia à Câmara dos Deputados decretar e sustentar a acusação dos ministros e conselheiros de Estado, como se lê do artigo 38 e Lei de 15 de outubro de 1827, artigos 17 e 18 e ao Senado, julgá-los, artigo 47, item 2º; artigo 20 da Lei de 15 de outubro de 1827.
Ficavam os acusados sujeitos a penas funcionais(perda do cargo com inabilitação para exercer outro), bem assim, as penas corporais(prisão e morte), de acordo com a Lei de 15 de outubro de 1827(artigo 1º e 2º).
Era o processo de natureza mista, político-criminal como na Inglaterra e França, com a diferença que apenas se aplicava aos ministros e conselheiros do Estado, artigos 133 e 143.
A iniciativa do processo era de qualquer cidadão, dos membros da Câmara dos Deputados, do Senado, como lecionava Pimenta Bueno.[1]
A Constituição de 1891 adotou o sistema norte-americano de responsabilidade. Pela primeira Constituição republicana, o processo e julgamento dos crimes comuns do Presidente da República e dos ministros de Estado é do Supremo Tribunal Federal e ao Senado, os de responsabilidade.
O decreto da Câmara sobre a procedência da acusação importava a suspensão do presidente da República ou do ministro no exercício de suas funções, artigo 53, parágrafo único. Restringiu o impeachment, contrariamente a Constituição norte-americana, ao Presidente da República, ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal (artigo 52, § 2º, art. 53 e art. 57, § 2º).
A Constituição de 1934 estatuiu que a pena a impor seria de perda do cargo, com inabilitação até o máximo de cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, consagrando a doutrina de Epitácio Pessoa, Pedro Lessa e Aníbal Freire[2] no sentido de que o impeachment é um processo misto, tanto que a renúncia não impede o prosseguimento ou, mesmo, o início do processo.
É certo que desde 1918, no exame do caso do general Caetano de Faria contra a Assembléia Legislativa de Mato Grosso, o Supremo Tribunal Federal adotou a tese de Epitácio Pessoa no sentido de que estamos diante de um processo misto(político-penal).
Tal sistema é distinto do modelo norte-americano, das orientações de Cooley, Story, Black. No sistema que adotamos, que é o do impeachment europeu, são impostas penas administrativas, civis e criminais, na linha de Duguit, Esmein, como bem reportado por JACQUES.[3] No Brasil, é sabido que BROSSARD[4] entende que o instituto tem feições políticas.
Assim, se a causa do processo não deixa de ser puramente política, o meio –-o processo e julgamento-– e o fim –-a pena– são tipicamente criminais, uma vez que o presidente da República sofre a imposição de uma perda(perda do cargo, com a incapacidade para exercer outro, ou sem ela).
A Constituição de 1937, ao contrário, restringiu as figuras delituosas que caracterizavam a responsabilidade do presidente da República, reduzindo para cinco as nove causas antes existentes(artigo 85). A Constituição outorgada tornou inviolável a figura do presidente da República, imunizando-o de responsabilidade por atos estranhos a suas funções, durante o exercício delas. Cometido um delito comum, o processo devia ser sustado, até que o presidente da República deixasse as funções, contrariamente ao que estabeleciam as Constituições anteriores, que o faziam processar e julgar pelo Supremo Tribunal Federal.
A Constituição de 1946, com a redemocratização, e o modelo liberal-populista, restaurou a definição dos crimes de responsabilidade, quer no seu processo e julgamento, mantendo a numeração constante da Constituição de 1934, incluindo, no texto do artigo 89, aquela que se refere á Constituição Federal, voltando, no que concerne ao processo e julgamento ao sistema norte-americano de 1891.
A Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, definiu os diferentes delitos de crimes de responsabilidade do presidente da República, ministros de Estado, ministros do Supremo Tribunal Federal, procurador-geral da República, governadores e secretários de Estado. Nos artigos 2º, 15, 42, parágrafo único, do artigo 76, consagrou a chamada doutrina segundo a qual a renúncia do acusado impede o início do processo.
A Constituição de 1967 manteve o instituto na linha da Constituição anterior.
O impeachment’ na Constituição de 1988, no que concerne ao presidente da Republica tem o seguinte procedimento: autorizada pela Câmara dos Deputados, por dois tercos de seus membros, a instauração do processo (C.F., art. 51, I), ou admitida a acusação (C.F., art. 86), o Senado Federal processará e julgará o presidente da Republica nos crimes de responsabilidade. É dizer: o ‘impeachment’ do presidente da Republica será processado e julgado pelo Senado Federal. O Senado Federal e não mais a Câmara dos Deputados formulará a acusação (juízo de pronúncia) e proferirá o julgamento. C.F./88, artigo 51, I; art. 52; artigo 86, § 1º, incisos I e II (MS no 21.564-DF).
A lei estabelecerá as normas de processo e julgamento. Constituição Federal, art. 85, par. único. Essas normas estão na Lei n. 1.079, de 1.950, que foi recepcionada, em grande parte, pela Constituição Federal de 1988 (MS n. 21.564-DF).
Estabelece o art. 86, caput, da Constituição Federal de 1988, que admitida a acusação contra o presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
Como já salientado, as infrações penais comuns opõem-se às infrações político-administrativas (crimes de responsabilidade), e tanto estas como aquelas podem ser cometidas pelo presidente da República durante o exercício do mandato presidencial. Em sendo um crime comum (peculato, corrupção passiva, concussão, etc.), admitida a acusação por maioria qualificada de dois terços da Câmara dos Deputados, o presidente da República sujeitar-se-á ao Supremo Tribunal Federal, que permitirá ou não a instauração de um processo contra o Chefe do Executivo Federal. Percebe-se, pois, que o presidente da República dispõe de prerrogativa de foro (prerrogativa de função).
Somente a Corte Suprema poderá processá-lo e julgá-lo por crimes comuns (CF, art. 102, I, b), obviamente após o juízo de admissibilidade da Câmara dos Deputados, que precisará do voto de 2/3 (dois terços) de seus membros para autorizar o processo. É importante notar, no entanto, que a admissão da acusação pela Câmara dos Deputados não vincula a Corte Suprema (STF), que poderá rejeitar a denúncia-crime ou queixa-crime, caso entenda, por exemplo, inexistirem elementos suficientes de autoria e materialidade.
Recebida a denúncia, o presidente da República ficará suspenso de suas funções por 180 dias; decorrido este prazo voltará o Presidente a exercer suas funções presidenciais, devendo o feito prosseguir até a decisão derradeira.
Registre-se que enquanto não sobrevier sentença condenatória, o presidente da República não poderá ser preso (art. 86, § 3º, da CF/88). Não se admite prisões em flagrante, preventiva e temporária, mesmo em se tratando de crimes inafiançáveis. Ademais, durante a vigência do mandato presidencial, não poderá o presidente ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (art. 86,§ 4º, da CF/88).
Em outras palavras, só haverá a persecução criminal após o término do mandato executivo, tendo em conta que o delito praticado não tem conexão com o exercício da função presidencial. Obviamente, haverá suspensão do curso da prescrição até o término do mandato executivo.
Nessa linha de pensar, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da AP 305/QO, relator ministro Celso de Mello, DJ de 18 de dezembro de 1992, acentuou que o artigo 86, parágrafo quarto, da Constituição, ao outorgar privilégio de ordem político-funcional ao presidente da República, exclui-o, durante a vigência de seu mandato – e por atos estranhos a seu exercício -, da possibilidade de ser ele submetido, no plano judicial, a qualquer ação persecutória do Estado.
Sendo assim a cláusula de exclusão inscrita no preceito constitucional, inscrito no artigo 84, parágrafo quarto, da Constituição Federal, ao inibir a atividade do Poder Público, em sede judicial, alcança as infrações penais comuns praticados em momento anterior ao da investidura no cargo de chefe do Poder Executivo da União, bem assim aqueles praticados durante a vigência do mandato, desde que estranhas ao oficio presidencial. Será hipótese de imunidade processual temporária.
Ficou acentuado que a norma constitucional consubstanciada no artigo 86, § 4º reclama e impõe, em função de seu caráter excepcional, exegese restrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.
Como conclusão se tem que a Constituição, no artigo 86, § 4º, não consagrou o principio da irresponsabilidade penal absoluta do presidente da República. O chefe de Estado, nos delitos penais praticados ¨in officio¨ou cometidos ¨propter officium¨, poderá ainda que vigente o mandato presidencial, sofrer a ¨persecutio criminis¨, desde que obtida, previamente, a necessária autorização da Câmara dos Deputados.
Tal se dá em decorrência do principio republicano, na possibilidade de responsabilizá-lo, penal e politicamente, pelos atos ilícitos que venha a praticar no exercício das funções.
No passado, no início da República, tivemos a tentativa frustrada de um processo de impeachment iniciado por J.J.Seabra, Jacques Ourique e Espírito Santo, em 1893, por haver o presidente Floriano Peixoto feito intervenção no Rio Grande do Sul e reformado militares; contra o presidente Campos Sales, iniciado pelo almirante Custódio de Melo, em 1901, e o deputado Fausto Cardoso, em 1902, respectivamente, por violências disciplinares e o caso do Acre; contra o presidente Hermes da Fonseca, iniciado pelo ex-senador Coelho Lisboa, em 1912, por intervenção na Bahia e na Paraíba, todos rejeitados pela Câmara dos Deputados.
Na história recente do Brasil, tem-se a ação penal em que o presidente da República Fernando Collor foi acusado pela Procuradoria-Geral da República e absolvido das acusações de corrupção pelo Supremo Tribunal Federal, por cinco votos favoráveis a três, por crime comum tipificado no artigo 307 do Código Penal(corrupção passiva), do que se viu na AP 307.
Em 29 de setembro de 1992, por 441 votos contra 38 votos, com uma abstenção e 23 ausências, a Câmara dos Deputados aprovou o pedido de abertura de impeachment contra o presidente da República Fernando Collor.
No dia seguinte, o então presidente da Câmara dos Deputados, Ibsen Pinheiro, entregou o parecer contendo as denúncias contra Fernando Collor a Mauro Benevides, presidente do Senado Federal. Em menos de duas horas, o parecer foi aprovado. Já, mais tarde, o pedido de impeachment foi levado ao Plenário do Senado, que se tornou, então, Tribunal de julgamento do presidente da República, por crime de responsabilidade. Afastado, compulsoriamente, por 180 dias, do cargo, Fernando Collor foi, em 2 de outubro de 1992, substituído pelo então vice-presidente Itamar Franco.
No Senado Federal, mesmo diante da renúncia do Presidente Collor, em 29 de dezembro de 1992, em julgamento presidido pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, Sydney Sanches, foi ele condenado por 76 votos contra 2, sendo-lhe imposta a inelegibilidade e a inabilitação, por oito anos, para o exercício de cargos públicos.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do MS 21.689/DF, entendeu que apresentada a denúncia, estando o presidente da República no exercício do cargo, prosseguirá a ação penal, mesmo após o término do mandato, ou deixando ele, por qualquer motivo, o exercício do cargo.
Se o presidente da República praticar um crime comum (não de responsabilidade, portanto), há que se verificar se existe pertinência entre o delito e o exercício da presidência.
Se o crime comum foi cometido no exercício da função presidencial ou em razão dele, o presidente poderá ser incriminado na vigência do mandato, perante o STF, desde que haja, como já salientado, prévia autorização da Câmara dos Deputados, por 2/3 dos seus membros. Entretanto, se o crime comum é estranho ao exercício da função presidencial, o presidente da República não responderá por ele na vigência do mandato, mas somente após o fim deste.
Enfim, é possível a prisão do presidente da República, desde que seja proferida uma sentença condenatória pelo STF. Antes disso, não.
Enquanto não sobrevier a citada sentença, nas infrações comuns, o presidente da República não estará sujeito à prisão (CF, art. 86, § 3º). Tal regra, importante frisar, não pode ser estendida aos governadores e prefeitos (ADI 1.028, j. 19/10/95, DJ de 17/11/95).
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