Se persistirem os sintomas, não consulte o Congresso
Sob o título “O Congresso Nacional não pode fazer o papel da Anvisa”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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Ao sancionar o texto que libera para venda no país três medicamentos anorexígenos (emagrecedores), o presidente interino, Rodrigo Maia (DEM), arrancou mais um naco da autoridade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
O caso diz respeito às substâncias anfepramona, femproporex e mazindol. Esses inibidores de apetite derivados de anfetaminas haviam sido proibidos pela Anvisa em 2011, sob a justificativa de que a perda de peso por eles induzida era pouco representativa —além de difícil de manter após interrupção do tratamento— e de que efeitos colaterais eram excessivos.
Apenas a anfepramona é vendida nos Estados Unidos, mas está proibida na Europa. O mazindol foi suspenso nos EUA e na Europa em 1999. O femproporex jamais foi autorizado nos EUA e terminou banido na Europa em 1999.
Ao que parece, os parlamentares brasileiros se consideram mais esclarecidos do que os técnicos das agências reguladoras da União Europeia, dos Estados Unidos e de seu próprio país, como acentuou a Folha, em editorial, no dia 24.6.2017, sob o título “Anvisa Esquálida“).
É necessário que se estudem providências, diante dessa medida infeliz, para junto ao Supremo Tribunal Federal ajuizar uma ação direta de inconstitucionalidade, pois a lei citada fere à razoabilidade e coloca a sociedade em situação de direta agressão aos seus direitos fundamentais à saúde. Adem ais o Poder Legislativo invadiu a função que é próprio de um poder normativo secundário, próprio de um órgão regulador, autarquia.
O doutor Jarbas Barbosa, presidente da Anvisa, tem toda razão ao dizer: “Não concordamos com a liberação de medicamentos feita por lei. O papel do Congresso é outro: cobrar da Anvisa eficiência, transparência e acompanhar seus processos. Mas não substituir suas funções”.
Essa matéria de saúde é de discricionariedade técnica da Administração: não é um problema para o legislador.
Volto-me à questão da venda dos medicamentos emagrecedores.
Diogo de Figueiredo Moreira (“Legitimidade e discricionariedade: novos reflexos sobre os limites e controle da discricionariedade”, 1989, pág. 22) definiu a discricionariedade como sendo a qualidade encarregada pela Lei à Administração Pública para determinar, de forma abstrata ou concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a definição de elementos essenciais à sua execução, diretamente referido a um interesse público especificado.
A discricionariedade é a manifestação concreta e unilateral da vontade da Administração. Não cabe ao legislador fazê-lo. O legislador emite atos abstratos, imperativos, coercitivos, estabelecendo normas abertas.
Lembro o que é discricionariedade técnica, que não pode ser exercida pelo legislador.
A discricionariedade pura ocorre quando a lei usa conceitos que dependem da manifestação dos órgãos técnicos, não cabendo ao administrador senão uma única solução juridicamente válida.
A discricionariedade técnica própria ocorre quando o administrador se louva em critérios técnicos, mas não se obriga por eles, podendo exercer seu juízo conforme critérios de conveniência e oportunidade.
É o caso da atuação das chamadas Agências Reguladoras.
A discricionariedade técnica comporta opções mais restritas.
Lembro a posição Antônio Francisco de Souza (“A discricionariedade administrativa”, Lisboa, Danúbio, 1987, pág. 307): “A natureza e dimensão desta “discricionariedade técnica” varia, porém, de pais para o país, é mesmo dentro de cada país que a adota que ela permanece obscura. Para uns, trata-se de um poder livre, para outros, de um poder vinculado, mas que não é suscetível de ser controlado pelos tribunais administrativos, para outros, de um poder vinculado que deve ser, ainda que não integralmente controlado judicialmente, para outros ainda, a sua natureza varia de caso para caso”.
Afirmou Odete Medauar (“Poder discricionário da administração”, RT, n. 610): “A distinção entre discricionariedade pura e discricionariedade técnica teria, segundo Piras, um sentido de apontar limites dados pela lei nesse ou naquele caso de discricionariedade. Mas, como Mortati, Piras, FIorini e Giannini, afirmamos o caráter unitário da discricionariedade na sua essência: podem variar os assuntos ou matérias sobre os quais se exerce. O recurso a conhecimentos técnicos pode ser necessário em vários momentos da atividade administrativa; mas, esses conhecimentos e dados representam somente um aspecto vinculado do poder discricionário em determinada decisão, ou a Administração fica ainda, com a possibilidade de cotejar vários critérios técnicos para determinar qual o mais eficaz e conveniente. A par da posição de que o mérito é insindicável, entendo que cabe ao Judiciário examinar os motivos e objetos do ato administrativo, para observar os limites da proporcionalidade e razoabilidade deles”.
Disse bem o ministro Luis Roberto Barroso (“Agências reguladoras: constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática”, Revista de Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo, volume 229), ao comentar o regime jurídico especial das Agências Reguladoras – que, segundo ele, visa preservar essas entidades de ingerências indevidas por parte do Estado e de seus agentes.
O ministro Luis Roberto Barroso procurou demarcar, por essa razão, um espaço de legítima discricionariedade com predomínio, de juízos técnicos sobre as valorações políticas.
É o caso dessa intervenção indevida do Legislativo em assuntos de discricionariedade técnica: a lei dita é inconstitucional porque invade assunto que é inerente à Administração, por suas Agências Reguladoras, e ainda foge à razoabilidade, que deve ser aferida através de discricionariedade técnica.
O exercício da discricionariedade deve ser feito pelo administrador sob o enfoque da conveniência e da oportunidade, dentro da liberdade que o legislador lhe dá, em seus limites.
Usurpou, pois, o Legislativo, exercendo por lei, e o presidente da República, ao sancionar lei inconstitucional, um papel regulatório que é próprio da Anvisa.
A Anvisa, como as demais agências regulatórias, têm o poder de exercer uma função normativa secundária, e não primária, como faz o Legislativo, por lei, ou o Executivo, por medidas provisórias (com os limites de urgência e necessidade dados pela Constituição).
Não cabe ao legislador primário uma função regulatória. Esta cabe às agências reguladoras. Disse bem Justen FIlho (“Direito das Agências Reguladoras Independentes”, 2002) que “a função regulatória(ou reguladora) visa realizar o gerenciamento dos múltiplos e antinômicos interesses da sociedade, traduzindo “em restrições à autonomia privada para evitar que o exercício abusivo de certas prerrogativas ponha em risco a realização de outros valores”.
Daí porque bem resumiu Carlos Roberto Siqueira Castro (“A Constituição aberta e os direitos fundamentais”, pág. 213) que a competência normativa exercida pelas Agências Reguladoras, inserida no sistema de separação de poderes e considerando-se a proeminência da instituição legislativa para a positivação das regras jurídicas, é inconfundível com o “poder regulamentar”, primário, de competência do chefe do Poder Executivo, que se faz através de regulamentos de execução(reproduzindo de forma analítica a lei, ampliando-a, se for o caso, e completando-a segundo o seu espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos e detalhes que a lei expressa ou implicitamente outorga à esfera regulamentar). O poder regulamentar do Executivo, lembre-se, envolve regulamentos(decretos) de regulamentação e regulamentos de organização, não autônomos, pois a Constituição não os permite.
Legislar é função do Poder Legislativo. A regulação, oficio da Anvisa, é tarefa e função administrativa.