“Mensalão da toga” pode ficar impune

Frederico Vasconcelos

Ação penal contra juízes acusados de fraude se arrasta no TRF-1

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A juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe, do Amazonas, recebeu em 2010 um telefonema que a deixou abalada. Seu irmão, general Jorge Fraxe, a questionou sobre uma dívida, que hoje corresponderia a R$ 117 mil, na Fundação Habitacional do Exército (FHE).

A dívida estava registrada em nome da juíza, mas ela nunca fez empréstimos na FHE.

Mais de cem juízes também não sabiam que tinham débitos elevados na fundação, pois não haviam firmado contratos. Eles foram vítimas de uma fraude atribuída a colegas magistrados.

Durante quase dez anos, a Associação dos Juízes Federais da 1ª Região (Ajufer) levantou dinheiro na fundação do Exército usando nomes de associados que desconheciam a trama.

Entre 2000 e 2009, a segunda maior entidade de juízes federais do país assinou 810 contratos com a fundação. Cerca de 700 foram fraudados, vários deles em nome de fantasmas.

Com recursos obtidos em sucessivos contratos fictícios, a associação rolou mensalmente empréstimos não quitados. Parte do dinheiro era desviado ou depositado em contas de laranjas.

A Folha revelou o caso em novembro de 2010. Levantamento realizado nas últimas semanas sugere que esse mensalão da toga deve ficar impune.

Em abril de 2011, temendo essa hipótese, 40 juízes prejudicados entregaram abaixo-assinado à corregedoria do TRF-1. Pediam uma “investigação célere”, afirmando que seus nomes foram utilizados “de forma irresponsável, temerária e fraudulenta”.

O primeiro convênio entre a Ajufer e FHE previa a concessão de empréstimos no limite de R$ 20 mil. No segundo convênio, esse teto foi suprimido.

No período investigado, seis ex-presidentes da Ajufer receberam o total de R$ 6 milhões, em 45 empréstimos. Cinco deles conseguiram novos contratos, mesmo acumulando dívidas.

A FHE descobriu a pirâmide financeira numa auditoria realizada em 2009.

Em outubro de 2010, a fundação moveu uma ação de cobrança contra a Ajufer. Pede que a entidade seja condenada a pagar R$ 32,6 milhões (valores atualizados), correspondentes ao saldo devedor de empréstimos.

Morosidade no tribunal

Uma ação penal sigilosa se arrasta no TRF-1, em Brasília. Foram denunciados Moacir Ferreira Ramos, Solange Salgado da Silva Ramos de Vasconcelos, Hamilton de Sá Dantas e Charles Renaud Frazão de Moraes, ex-presidentes da Ajufer; o ex-diretor da FHE José de Melo, além de Cezário Braga e Nilson Freitas Carvalho, apontados como agiotas e doleiros.

Eles foram acusados, pelo Ministério Público Federal, da prática dos crimes de gestão fraudulenta, falsidade material e ideológica, apropriação indébita e lavagem de dinheiro.

A denúncia foi oferecida em dezembro de 2014. Só foi recebida em maio de 2016. O relator, desembargador Jirair Meguerian, ainda não citou os réus para apresentarem defesa prévia. Foi decretada a extinção da punibilidade, por prescrição, de Hamilton Dantas.

O tribunal não presta informações sobre o processo, que corre em sigilo de justiça.

Como funcionava a pirâmide

A Ajufer intermediava o repasse de dinheiro entre a FHE e o associado, tanto para a tomada de empréstimo quanto para amortização das parcelas. Para a liberação do dinheiro, bastava a Ajufer informar o nome do associado. Não havia garantias, controle ou fiscalização.

A anatomia desse mensalão foi exposta pelo ministro Herman Benjamin, em voto no Conselho da Justiça Federal, com base em relatório de juízes designados pela própria Ajufer, depois que o ardil foi descoberto.

O juiz Moacir Ramos indicava à FHE os supostos beneficiários dos empréstimos. Sacava a quantia para pagar prestações dos empréstimos em curso e transferia para suas contas pessoais e de laranjas a diferença [ou seja, o valor sacado, menos as prestações em curso].

No mês seguinte, “firmava” novos empréstimos fraudulentos em valores superiores à soma das prestações anteriores e repetia o desvio de recursos.

Ramos atuou em todas as gestões da Ajufer –como diretor financeiro e como presidente quando o golpe foi descoberto.

“Ele ‘rolou’ a dívida total por quase uma década, sem que o problema fosse percebido”, diz Benjamin.

O TRF-1 aposentou compulsoriamente Moacir Ramos, em julho de 2013 (o juiz pedira aposentadoria por invalidez dois anos antes). Aplicou medidas brandas a Hamilton Dantas e Solange Salgado (censura) e a Charles Moraes (advertência).

No último dia 30 de junho, o ministro Raul Araújo, do Superior Tribunal de Justiça, determinou o arquivamento de inquérito sigiloso, autuado em 2011, para apurar a conduta do desembargador Antônio de Souza Prudente, primeiro presidente da Ajufer, que tem direito a foro especial.

Em novembro de 2014, o Conselho da Justiça Federal arquivou –por nove votos a um– uma sindicância sobre Prudente. O relator, ministro Humberto Martins, foi o único favorável à instauração de processo disciplinar.

Então corregedor da Justiça Federal, Martins entendeu que a defesa não afastou os indícios de que Prudente “se beneficiou de recursos de terceiros para amortizar prestações ou quitar contratos firmados pela Ajufer em seu favor”. Martins registrou que Prudente “jamais disponibilizou seu sigilo fiscal”.

Prevaleceu o voto vista do ministro Herman Benjamin. Ele entendeu que Prudente “se desorganizou financeiramente”, o que dificultou explicar os pagamentos à Ajufer.

Ele “sempre pagava várias prestações, mesmo com atraso”, disse. Benjamin concluiu que Prudente não era conhecedor das fraudes, e que “jamais contratou diretamente com a FHE”.

Quando a FHE já havia suspendido os empréstimos à Ajufer, Moacir Ramos pediu ao então presidente da fundação, general Clovis Jacy Burmann, ajuda para Prudente, que mantinha uma dívida de mais de R$ 340 mil.

Ramos também solicitou a José de Melo, diretor da FHE, “autorizar a renegociação” do contrato de Prudente, para amortizar, “de logo”, R$ 60 mil, propondo que o saldo devedor fosse pago em dez anos, com taxa especial.

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Cheques da Afufer foram depositados em conta de agiota

 

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Citado nos autos da Justiça Federal como agiota que opera em Brasília, Cezário Braga recebeu 38 cheques, no total de R$ 387,4 mil, emitidos pela Associação dos Juízes Federais da 1ª Região (Ajufer).

Constava no verso de vários cheques que o valor se destinava ao pagamento de empréstimos tomados por associados junto à Fundação Habitacional do Exército (FHE).

O fato foi relatado pelo desembargador Cândido Ribeiro, então corregedor da Justiça Federal da 1ª Região, quando o TRF-1 instaurou processo administrativo disciplinar contra Moacir Ramos, Solange Salgado, Hamilton Dantas e Charles Moraes.

Em depoimento ao corregedor, Dantas definiu Cezário Braga como um agiota que lhe foi indicado por Moacir Ramos, quando enfrentou dificuldades financeiras.

“Em 32 anos de magistratura, nunca vi uma coisa tão séria”, afirmou a então corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, ao comentar sua decisão de afastar do cargo o juiz Moacir Ramos, em novembro de 2010.

Ramos confirmou a Eliana que tinha usado indevidamente o nome dos colegas, e mandou entregar à corregedora uma mala com documentos. “Os juízes auxiliares ficaram estupefatos de ver os contratos, empréstimos de R$ 300 mil, R$ 400 mil”, disse a ministra.

Cheques da Ajufer foram sacados na boca do caixa e depositados em outras contas bancárias, para dificultar o rastreamento do dinheiro.

Uma contabilidade paralela, caixa dois, serviu para custear eventos de juízes em resorts com recursos da FHE.

A associação pagou R$ 56,6 mil à Kyoto Motors. Era parte de pagamento de um veículo Hilux SW4 em nome de uma empresária “estranha às relações da Ajufer”.

Solange assinou cheques da Ajufer, totalizando R$ 419,6 mil, em favor de dois sobrinhos. Moacir e Charles também assinaram cheques para os sobrinhos da juíza.

Foram feitos depósitos para Manoel Rodrigues Portela Neto, que “prestava pequenos serviços particulares” a Ramos.

O desembargador Cândido Ribeiro concluiu seu relatório afirmando que Moacir Ramos, Solange Salgado, Charles Moraes e Hamilton Dantas, “todos eles assinaram, como dirigentes da Ajufer, contratos fraudulentos”.

Houve “situações ainda mais graves e inacreditáveis, como a falsificação de assinaturas e certidões”, assinalou.

Moacir Ramos atestou que a juíza federal Jaiza Fraxe “nunca firmou, solicitou (nem recebeu qualquer valor), nem autorizou qualquer contrato de financiamento (empréstimo pessoal)”.

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OUTRO LADO –

Ajufer responsabiliza quem firmou contratos fictícios

 

A Associação dos Juízes Federais da 1ª Região chamou à responsabilidade todos os ex-presidentes e tesoureiros que assinaram os contratos fictícios, informa Roberto Veloso, presidente da entidade nacional dos juízes federais (Ajufe) e ex-presidente da Ajufer.

A Ajufer ingressou na Justiça com denunciação à lide, ou seja, passou do polo passivo para o ativo na ação de cobrança movida pela Fundação Habitacional do Exército (FHE).

“Os fatos envolvendo contratos fictícios contendo nomes de juízes federais foi motivo de grande comoção e indignação na magistratura”, diz Veloso.

“Conforme prometi no meu discurso de posse na presidência da Ajufer, em dezembro de 2010, a partir de então nenhum recurso da entidade serviu para cobrir dívidas contraídas fraudulentamente”, diz.

O atual presidente da Ajufer, juiz federal Leonardo Tocchetto Pauperio, afirma que, desde 2011, a associação “tem adotado diversas medidas a propósito dos empréstimos fraudulentos que vitimaram a entidade e seus associados”.

“Foi realizada auditoria interna e os relatórios foram encaminhados à Corregedoria Regional do TRF-1, fornecendo informações que resultaram na aplicação de sanções administrativas e na propositura de ações penais, ainda em curso.”

Segundo Pauperio, a associação “considera o ocorrido uma situação absurda e lamentável, e espera que todos os responsáveis sejam punidos, nos termos da lei e com a máxima celeridade possível”.

A Fundação Habitacional do Exército afirma que “as medidas jurídicas oportunas e adequadas ao ressarcimento dos danos à fundação foram materializadas na ação judicial de cobrança”.

A FHE informa que há uma Tomada de Contas Especial, junto ao Tribunal de Contas da União, “em que os valores também são buscados daqueles que, após procedimento administrativo, foram considerados responsáveis pelo dano perpetrado em desfavor desta Fundação.”

O juiz federal Moacir Ramos afirmou à corregedoria que “a utilização indevida do nome dos juízes em nada repercutiu na esfera patrimonial ou moral dos magistrados”, porque eles “não figuram como devedores.”

Ramos disse que a FHE “tinha conhecimento de todos os contratos e os assinava sem opor qualquer resistência”. O advogado de Ramos, Jonas Modesto da Cruz, diz que só se pronuncia nos autos.

Solange Salgado disse ao corregedor que “assinava cheques em branco, na confiança que depositava no juiz Moacir Ramos”. Afirmou que “também foi uma das associadas lesadas”.

Charles Moraes afirmou à corregedoria “não ter consciência da dimensão dos fatos em apuração, devido à confiança que depositava no diretor-financeiro, Moacir Ramos”.

Os advogados de Hamilton Dantas informaram que só se manifestam nos autos. Ao corregedor, o juiz disse que “não tem riqueza pessoal “ e “que “perdeu o controle da sua situação financeira e do próprio acompanhamento dos seus contratos”.

O desembargador Antônio de Souza Prudente afirmou à Folha, em 2011, que jamais realizou qualquer convênio.

“Toda vez que eu rolei o empréstimo foi porque os juros estavam mais favoráveis”. “O anterior era quitado com parte do valor”, disse. Seu advogado, Luiz Carlos Alcoforado, disse, na ocasião, que o fato de Prudente ser devedor “não o desqualifica, sob o ponto de vista ético ou moral”.

A defesa de José de Melo, ex-diretor da FHE, diz que ele não praticou irregularidades, e que agiu em nome do então presidente da fundação, que outorgou procuração para representá-lo.

A defesa de Cezário Braga e Nilson Freitas Carvalho não se manifestou.