O sítio militar, o juiz e o poeta

Frederico Vasconcelos

O juiz de direito David de Oliveira Gomes Filho, de Campo Grande (MS), recorreu à poesia para decidir sobre onde colocar uma estátua de bronze em homenagem ao poeta pantaneiro Manoel de Barros. (*)

A prefeitura escolhera o canteiro central da avenida Afonso Pena, mas o Instituto de História e Geografia de Mato Grosso do Sul deu parecer contrário porque, no local, existe um sítio arqueológico militar.

Segundo o instituto, “pretender instalar a estátua do poeta Manoel de Barros, a trinta e cinco metros da plataforma de formação militar e a quarenta metros do monumento em homenagem aos heróis da Força Expedicionária Brasileira, significa comprometer a integridade desse SÍTIO HISTÓRICO MILITAR, documento vivo da relação intrínseca entre o Exército e a gênese de Campo Grande e de Mato Grosso do Sul”.

Em sua sentença, o juiz questionou qual seria a decisão de Manoel de Barros: “Será que ele iria querer se meter em tamanha confusão, para ficar sentado no centro da cidade, em frente ao Hotel de Trânsito dos Oficiais?”

Diante da dúvida entre as armas e as palavras, o juiz parodiou o famoso poema de Carlos Drummond de Andrade “E agora, José?”. E determinou que “a homenagem seja prestada em outro local que não obtenha as restrições”, além de arbitrar multa de R$ 100 mil no caso de descumprimento.

Eis a íntegra da sentença:

***
Vistos etc.

1) O Ministério Público ajuizou o presente cumprimento de sentença, alegando que o canteiro central da Av. Afonso Pena foi tombado como patrimônio histórico e cultural de Campo Grande, MS, após decisão judicial já transitada em julgado.

Conforme aquela sentença, qualquer intervenção no canteiro, com o fito de modificar ou de acrescentar algo ao patrimônio tombado, deveria obter parecer favorável da Secretaria de Cultura do Município e do Instituto de História e de Geografia de Mato Grosso do Sul.

Sustenta a promotoria que, apesar das suas recomendações contrárias, o Município de Campo Grande decidiu colocar no Canteiro Central da Av. Afonso Pena uma estátua de bronze para homenagear o poeta pantaneiro Manoel de Barros.

A Secretaria de Cultura teria dado um parecer favorável ao Município, mas o Instituto de História e de Geografia de Mato Grosso do Sul deu um parecer contrário à pretensão do Município, porque, naquele exato local, existe um sítio arqueológico militar, representativo de parte importante da história brasileira e sul-mato-grossense.

O mito “Manoel de Barros” não se harmonizaria com a história específica daquele local, mas não existiria oposição do Instituto a que se instalasse a estátua no mesmo
canteiro, mais acima ou mais abaixo, fora daquele sítio.

Como a base de concreto para receber a estátua está pronta e falta apenas a sua colocação no local, o Ministério Público pede que o Poder Judiciário impeça a instalação.

É o relatório. Decido.

E agora, Mané? Talvez Carlos Drummond de Andrade, no lugar deste juiz, começasse sua decisão assim:

“E agora, Mané?”

Evidentemente que este magistrado não tem intimidade com o querido Manoel de Barros para chamá-lo de “Mané”, mas quem sabe Drummond teria…

Fico imaginando se o grande poeta permitiria uma escovação das suas palavras para tentar transformar o “E agora, José?” em “E agora, Mané?”, afinal de contas, as palavras escondiam Manoel de Barros sem cuidado e o encontravam onde ele não estava!

*

E agora, Mané?
A festa nem começou,
as luzes não acenderam,
o povo não chegou,
a homenagem parou,
e agora, Mané?
e agora, você?
você que quer homenageá-lo,
você que quer proteger o patrimônio histórico,
você que faz obras,
você que faz processos,
e agora, você?

A base de concreto está sem estátua,
o Mané sem homenagem,
o sítio arqueológico militar sem respeito,
o homem sem reflexão,
a mulher sem compreensão,
e a noite esfriou,
o dia não veio,
não veio a utopia,
e tudo parou,
e tudo esperou,
e tudo judicializou,
e agora, Mané?

E agora, Mané?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
sua simplicidade – e agora?

Com a caneta na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer atirar no mar,
mas o mar secou;
quer ir para casa,
casa não há mais.
Juiz, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você abandonasse…
mas você não desiste,
você enfrenta, juiz!

Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você decide, juiz!
Juiz, para onde?

Para onde as palavras mandarem, pois elas são generais, com arma em punho, com patente superior, enquanto que os fatos são os soldados rasos, que se atolam na lama da vida e clamam pela misericórdia de Deus, mas Ele deixa que generais e soldados se entendam, que busquem sozinhos o equilíbrio e a harmonia, e o homem com a caneta na mão, tal qual um cego com sua varinha, tateia o caminho mais seguro, pois os buracos são abismos e eles podem cair sobre nós com todo aquele peso que só os abismos têm.

No fundo dele, o coachar de um sapo, com sua barriga chata esparramada no solo, alfineta o cego, que enxerga aquilo que não vê, aquilo que ninguém vê, pois Manoel só queria misturar-se às folhas que empurravam brisas para onde elas não iam.

Um poeta, amante da natureza, materializador de abstratices, exímio desengavetador de palavras, profundo conhecedor do delírio lúcido.

Será que ele iria querer se meter em tamanha confusão, para ficar sentado no centro da cidade, em frente ao Hotel de Trânsito dos Oficiais?

Certamente as decisões jurídicas não costumam abrigar a poesia, mas, sem dúvida, neste caso, ela trouxe um pouco de leveza à aridez do processo e do Direito. É uma flor nascendo na fresta de uma pedra. Talvez seja o “Efeito Manoel de Barros” de fazer brotar beleza nos locais mais improváveis.

Até aqui, pela primeira vez na vida deste magistrado, ficou o registro de um delírio seu, consciente e oficial, numa grotesca e amadora tentativa de homenagear a poesia, custe o que custar…

Mas a sensatez das palavras se impõem, a sentença prolatada nos autos 0033503-82.2012.8.12.0001 deixou definido que qualquer intervenção no canteiro para o acréscimo de algo ou a sua modificação ficaria “sempre condicionada à obtenção de laudos favoráveis do respectivo órgão de cultura do Município de Campo Grande e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul” -grifos nossos (fls. 20).

Esta sentença transitou em julgado (fls. 35).

O Instituto Histórico de Mato Grosso do Sul, após discorrer sobre a importância do “Exército Nacional” na formação da sociedade sul-mato-grossense, realçando aspectos históricos daquele local específico, não aprovou a modificação.

Consta do laudo o seguinte:

-“No caso do conjunto formado pelo prédio do Quartel General, na calçada par da Avenida Afonso Pena, pela unidade constituída da plataforma para formação militar,
mastros e bandeiras e monumento em homenagem aos heróis da Força Expedicionária Brasileira, situada no canteiro central da Avenida Afonso Pena, no alinhamento do quartel General e pelo prédio do Hotel de Trânsito dos Oficiais do Exército, alinhado na calçada oposta, identifica-se um SÍTIO HISTÓRICO MILITAR com todas as características necessárias a essa configuração, seja a presença dos monumentos arquitetônicos, seja a disposição contígua no espaço, seja o sentido desse vestígios documentais a testemunhas a nossa História…” – destaques no original (fls. 67).

– “Destarte, pretender instalar a estátua do poeta Manoel de Barros, a trinta e cinco metros da plataforma de formação militar e a quarenta metros do monumento em
homenagem aos heróis da Força Expedicionária Brasileira, significa comprometer a integridade desse SÍTIO HISTÓRICO MILITAR, documento vivo da relação intrínseca entre o Exército e a gênese de Campo Grande e de Mato Grosso do Sul.

Por todo o exposto, e tendo em vista a deliberação, à unanimidade, da Assembleia do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul somos de parecer contrário à instalação da estátua do poeta e escrito Manoel de Barros, no aludido canteiro central da Avenida Afonso Pena, entre as Ruas 13 de Maio e Rui Barbosa, podendo ser
escolhido qualquer outro ponto da extensa avenida para abrigá-la” – destaques no original (fls. 68).

Assim, em cumprimento da decisão prolatada e transitada em julgado, determino que se recomponha a área preparada para receber a homenagem a Manoel de Barros ao estado anterior e autorizo que a homenagem seja prestada em outro local que não obtenha as restrições da Secretaria da Cultura de Campo Grande “e” do Instituto de História e Geografia de Mato Grosso do Sul, caso a Administração Pública decida agraciar o Canteiro Central da Avenida Afonso Pena com a memória do mito Manoel de Barros.

Prazo: 60 dias.

2) Para o caso de descumprimento da medida, nos termos do art. 536, § 1º do CPC, arbitro multa de R$ 100.000,00 em favor do Fundo Municipal do Meio Ambiente, cuja utilização pelo respectivo conselho ficará condicionada às despesas de manutenção ou de recomposição do patrimônio tombado (Canteiro da Av. Afonso Pena).

Neste caso, também deverá ser encaminhado cópia dos autos e de eventual laudo de constatação ao Ministério Público para que avalie a possibilidade de ocorrência de improbidade administrativa e de crime (art. 62 e 63 da Lei n. 9.605/1998).

3) O Município poderá apresentar impugnação ao cumprimento de sentença em 30 dias.

4) Expeça-se o mandado de citação.

Intimem-se.

Campo Grande/MS, 04 de setembro de 2017.

David de Oliveira Gomes Filho

Juiz de Direito

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(*) Autos n. 0901007-96.2017.8.12.0001 – Campo Grande/MS.