A defesa festiva
O mensalão e a Lava Jato permitiram o aprimoramento do direito de defesa e, como subproduto, atiçaram a fogueira das vaidades de famosos causídicos que disputam espaço e aplausos em colunas e redes sociais.
A mais recente demonstração desse exibicionismo aconteceu em Lisboa, onde o criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, recebeu amigos para celebrar seus 60 anos nos salões do Palácio Xabregas e na vinícola Adega Mãe, em Torre Vedras, a 60 km da capital portuguesa.
O evento mereceu relato detalhado de Eliane Trindade, na Folha.
“Só fiz a festa em Portugal porque não pude fazer em casa. O Brasil virou um país punitivo, esquisito”, diz Kakay. “Quando fiz 50 anos, convidei todos os amigos, gente do Executivo, do Legislativo, do Judiciário. Tinha vários senadores, governadores, ministros de tribunais superiores, ex-presidente. Hoje não dá para fazer isso.”
Tem razão o anfitrião d’além-mar.
Não há mais clima no país para as ousadias gastronômicas. Às vésperas do julgamento do mensalão, os restaurantes de Kakay em Brasília ofereciam cardápios ironizando aquela que foi, à época, a maior investigação contra a corrupção: o sanduíche “Presuntão da Inocência”, na Expand (baguete, presunto parma, queijo brie e geleia de mirtilo), e o “Supremo Corte”, no Piantella (filé com creme de mostarda, ervilha, cebola, presunto e batata palha), segundo revelou a repórter Gabriela Guerreiro, na Folha.
Como previu este Blog, em setembro de 2012, “se o julgamento do mensalão continuar seguindo o roteiro traçado pelo ministro Joaquim Barbosa, o processo chegará ao final com boa dose de desgaste para os notáveis da advocacia”.
Os representantes da grande banca criminal desembarcaram em Brasília confiantes, acreditando que seus clientes não passariam pela Papuda. A Ação Penal 470 colocou advogados experientes e novatos no mesmo barco, com a rejeição das principais teses da defesa.
Em reportagem de capa, sob o título “O sofrimento dos medalhões”, a repórter Cynara Menezes, da revista “CartaCapital”, registrou na ocasião: “advogados renomados e regiamente pagos sofrem derrotas acachapantes no Supremo Tribunal”.
A convicção de que o cenário mudou foi admitida em Lisboa por outros comensais.
“Nosso país hoje não permite comemorações. Muitos clientes estão presos, é difícil separar o pessoal do profissional”, lamentou o criminalista Roberto Podval.
Para ele, ainda segundo o relato de Eliane Trindade, “seria natural ter colegas de outras áreas do direito em eventos sociais como o de Kakay, assim como no seu casamento, realizado na ilha de Capri, na Itália, quando a presença do ministro do STF Dias Toffoli foi considerada escandalosa”.
Então candidato à OAB-SP em 2012, Podval contou, em entrevista nas ‘páginas amarelas’ da Veja, como construiu sua carreira com garra e superando dificuldades diárias:
“Comecei de baixo (…). Almoçava sanduíche de linguiça na Praça da Sé (…) Era um advogado de porta de cadeia, literalmente (…) Ia de madrugada até as delegacias arranjar cliente. Olhava o sujeito, dava meu cartão, via quanto ele podia pagar e ia tentar soltá-lo (…)”.
Mais tarde, informou a OAB, Podval fez mestrado na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde defendeu a tese “O bem jurídico nos crimes de lavagem de dinheiro”.
Uma biografia que deve ser respeitada.
Em agosto, este Blog registrou mais um lance do que denominou a “espetacularização” da advocacia, ao noticiar que Kakay seria o “advogado de defesa” da Operação Lava Jato, em júri popular simulado em Curitiba, no Dia do Advogado (11).
“A ironia e o humor também fazem parte da nossa luta”, afirmou o criminalista, em comentário distribuído nas redes sociais.
Desde o mensalão, Kakay parece cultivar a berlinda, como uma espécie de porta-voz da grande banca. O criminalista disse que foi chamado para “defender” a Lava Jato no júri simulado “exatamente por ser um crítico ácido, mas leal”.
Claudio Weber Abramo, ex-diretor executivo da Transparência Brasil, afirmou, então, que Kakay “é um desses advogados caríssimos que se especializa na defesa de políticos acusados de corrupção, fazendo-o por meio da interposição interminável de recursos protelatórios”.
Eliane Trindade assim concluiu o relato do evento em Lisboa:
“O anfitrião ainda declamou poemas e fez um discurso emocionado na hora de apagar as velas. ‘Como diz Fernando Pessoa, tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Na terra do poeta, eu pratiquei o socialismo das ideias e dos afetos. Bem-vindos ao meu delírio.’
Correndo o risco de serem acusados de mesquinhez, os mais críticos poderiam acrescentar: tudo vale a pena quando a remuneração da clientela também não é pequena.