No crime de obstrução, confundem-se autoridades e vítimas
Sob o título “Obstrução ou extrusão da Justiça?“, o artigo a seguir é de autoria de Celso Três, procurador da República em Novo Hamburgo (RS).
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Em voga, especialmente na Lava Jato, tanto como objeto de acusação quanto fundamento a prisões processuais, o delito de obstrução da justiça.
Eis a tipicidade, Lei 12.850/13: ‘§ 1o Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.’
Ferrajoli, lapidar e inexcedível, sistematiza a axiomatização do rito de passagem à criminalização de qualquer conduta: 1)’nulla poena sine crimine’; 2)’nullum crimen sine lege’; 3)’nulla lex(poenalis) sine necessitate’; 4)’nulla necessitas sine injuria’; 5)’nulla injuria sine actione’; 6)’nulla actio sine culpa’; 7)’nulla culpa sine judicio’; 8)’nullum judicium sine accusatione’; 9)’nulla accusatio sine probatione’; 10)’nulla probatio sine defensione’.
Somente quando vencida na integralidade essa provação é que a conduta de alguém pode ser criminalmente punida.
São primados que obrigam o Estado, a eles submetidos todos os seus poderes: legislador, investigador, acusador e o julgador.
Quando o legislativo cria o delito, deve atender aqueles princípios desde a escolha da conduta incriminada, sua descrição objetiva e bem assim as respectivas garantias do devido processo de formação da culpa.
Identicamente, a polícia que investiga, o ministério público que acusa e, principalmente, o judiciário, a quem cumpre sindicar o desempenho de todos os demais, incluindo o legislador, devem certificar o cumprimento de todo o rito de passagem da conduta punida.
Mesmo as escolhas afetas ao legislador devem ser aferidas pelo judiciário, eis que, além de poderem ser invalidadas pela inconstitucionalidade, serão relevantes para modular a hermenêutica correta que deve ser aplicada, depurando o excessos muito comuns em tipos genéricos, consoante o ora sob análise.
Douglas Fischer, expoente da Lava Jato, sentencia: ‘o direito é alográfico na medida em que o texto normativo não se completa no sentido impresso pelo legislador, mas sim quando o seu sentido é produzido pelo intérprete’.
No caso, o núcleo da obstrução: ‘… de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal …’, tamanha sua amplitude, transforma o julgador em legislador das condutas que devam ou não ser incriminadas.
Brutal desafio ao Judiciário, adverte Ferrajoli: ‘os juízes devem recordar que seu ofício é ‘jus dicere’ e não ‘jus dare’; interpretar o direito e não fazer o direito ou criar o direito’.
Scialoja, reportado por Ferri: ‘o Direito é a arte de traçar limites e um limite não existe senão quando é claro’.
Paulo Bonavides:’A superação do positivismo de nenhum modo pode implicar o abandono da positividade do Direito’.
Na sistematização de Ferrajoli (‘nullum crimen sine lege’), também compreendida ‘nullum crimen, nulla poena sine lege stricta/certa-typo’, qual seja, no dizer de Toledo: ‘a exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios’.
Neste tipo da obstrução, uma vez claramente descumprido pelo legislativo o primado da certeza, cumpre ao judiciário colmatar a lacuna, expungindo qualquer exegese que desborde da tábua de princípios sistematizada por Ferrajoli.
Ernesto Penalva, referido por Bonavides: ‘velha idéia do século XIX de proteção da liberdade pela lei tende a ser substituída pela necessidade da proteção das liberdades frente à lei’.
Argentino Soler: ‘… la sola existência de ley previa no basta: esta ley debe reunir ciertos caracteres; debe ser concretamente definitoria de uma acción, debe trazer uma figura cerrada em si misma, em cuya virtud se conozca no solamente cual es la conducta compreendida sino también cuál es la no comprendida’.
Nos tipos abertos, consoante este da obstrução, os princípios servem para afastar condutas delituosas – ‘… la no comprendida’.
Seguem as ressalvas.
A gênese do direito penal, a partir do contrato social pelo qual a pessoa renuncia à autotutela e violência outorgando ao Estado o monopólio da justiça substitutiva, está na defesa do indivíduo contra agressões de seus pares e não na proteção do Estado contra as pessoas.
Aníbal Bruno: ‘O critério para medir a responsabilidade penal do agente não é a sua intenção, nem a gravidade do seu pecado. Será apenas o dano que do seu crime resulte para a sociedade.’
Ferrajoli fala da ‘parábola involutiva da doutrina do bem jurídico: da tutela de direitos subjetivos à tutela do Estado’.
Óbvio a existência de vários bens jurídicos titulados pelo Estado e merecedores de proteção penal, sendo a corrupção caso mais contundente. Porém, a tutela criminal em prol do Estado deve ser exceção, mesmo porque o poder público dispõe de outros instrumentos próprios de defesa, como o direito administrativo e tributário. Hungria: ‘A pena é a ‘ultima ratio’ na garantia do mínio ético’
No crime de obstrução, mais que proteger o Estado, confundem-se autoridades e vítimas, ou seja, quem investiga, acusa e julga são, precisamente, quem sentem-se obstruídos no exercício de sua autoridade, sentimento esse facilmente confundido com o da contrariedade pessoal dos agentes com os naturais embaraços processuais na formação da culpa(direitos próprios da ampla defesa) de seus alvos.
Há inequívoco conflito de interesses. Esse crime não poderia processado por idênticos policiais, procuradores e juízes que atuam nas persecuções em face das quais imputam-se a obstrução da justiça.
Exemplo semelhante? Ações de danos morais dos juízes contra a mídia têm valores indenizatórios muito superiores na comparação com outros demandantes (Folha, 27/4/08).
Nietzsche: ‘mais do que as mentiras, as convicções são inimigas mais perigosas da verdade’ No caso, convicção da culpa do acusado. Não temos provas, temos convicção, já ouviu-se de ilustre acusador.
Na Lava Jato, não por acaso este crime é cavalo de batalha à imputação e prisão processual. Ilustres quem veem-se como a justiça encarnada, qualquer óbice é obstrução delituosa.
Magistral, Ferrajoli, aludido por Fischer: ‘El garantismo se opone, pues, al autoritarismo en politica y al decisionismo en derecho, propugnando, frente al primero, la democracia sustancial y, frente al segundo, en principio de legalidad’.
Portanto, a singularidade de ser brandido em causa própria pela autoridade em patente conflito de interesses – ‘decisionismo en derecho’, exige extraordinária contenção no reconhecimento de seu enquadramento.
Zaffaroni pontua outra fronteira à criminalização: ‘… as penas não podem recair sobre as condutas que são justamente o exercício da autonomia moral que a constituição e as leis garantem, e sim sobre aquelas que afetam o exercício desta autonomia ética’
Assis Toledo complementa “… quanto mais imprescindível seja um tipo de comportamento humano, tanto maior será o risco que, em relação a ele, se deverá correr, sem que disso resulte uma reprovação jurídica.’
Exemplo desta distorção? Juiz manda quebrar sigilo telefônico de jornalista que revelou corrupção no Banco do Brasil (Folha, 30/11/16). Urge proteger é o sigilo constitucional da fonte jornalística, não da apuração sigilosa.
Vale também em face dos agentes da justiça. Basta ver a momentosa discussão sobre leis do abuso de autoridade, cuja definição, a depender da amplitude, poderá criminalizar o próprio exercício dos deveres e atribuições institucionais.
Nesse âmbito, é obstrução nomeação de ministro, entendido como artifício para granjear foro e impunidade no STF? Seria presumir o procurador-geral e a corte seriam lenientes. Impensável.
Escolha, pela presidente, de ministro do STJ em lista tríplice da própria corte, entendido como destinado a inocentar acusados? Seria presumir que todos quem contribuíram à lista são coautores. Lembrando que, nos EUA, rotineira a nomeação de juízes explicitamente alinhados com a doutrina do presidente.
Obstrução a disposição em legislar matérias contrárias ao interesse investigatório do ministério público? Parlamentar goza de imunidade civil e criminal, insondáveis as razões de seus votos.
No processo penal, isso ganha enorme relevo com todas as prerrogativas inerentes à ampla defesa. O direito ao silêncio do investigado, de em hipótese alguma produzir prova contra si mesmo, emana vários cânones avessos à criminalização.
Na Lava Jato, recorrente a invocação da destruição de provas como fundamento à prisão preventiva. Onde está o dever do acusado em preservar rastros do delito que estejam sob seu domínio e disponibilidade? Não existe!
Sendo direito potestativo o de silenciar, insindicável a motivação do investigado a assim agir. Pode ser pela descrença na justiça terrena e credo na divina, estratégia de defesa, arrogância, depressão, comiseração com o real criminoso … e pode ser vantajoso, ter sido pago a tanto.
Odebrecht apresentou 78 delatores, quando tivemos a bolsa delação, pagamento da empresa a que subordinados, em prol dos patrões, assumissem-se corruptores (Folha, 28/8/16). Como, então, pagar para não delatar pode ser obstrução da justiça?
Zaffaroni: ‘A tipicidade penal requer que a conduta, além de enquadrar-se no tipo legal, viole a norma e afete o bem jurídico’
Aqui, qual o bem jurídico protegido?
Seria a ‘ … investigação de infração penal …’?
Não! É, obedecido o devido processo legal, a investigação de infração penal.
Qualquer violação ao devido processo legal também é obstrução da justiça, eis que inconcebível fosse criminalmente protegida a investigação ilícita, abusiva.
Portanto, quando a autoridade vaza apuração sob sigilo, prejudicando a efetividade da instrução (coleta de prova em busca domiciliar, etc.) e violando os direitos da personalidade do investigado, também incorre na obstrução.
A obstrução da justiça deveria ter sido prevista a qualquer processo, englobando condutas já típicas, como a coação e fraude processual (arts. 344 e 347 do Código Penal). Foi vinculada à existência de organização criminosa. Isso levou à inflação da acusação desse delito, olvidada a associação, antiga quadrilha (art. 288 do CP).
Além disso, bastando delito de pena máxima superior a 4 anos, mediante organização, podemos ter infrações pífias, a exemplo do estelionato mediante o conto do bilhete premiado, abrigadas pela obstrução da justiça, ao passo que outras gravíssimas, como o assassinato e estupro sem a pluralidade de agentes organizados, não. Nisso, lembra a Lei nº 8.072/90, a qual elencou os delitos hediondos, omitindo o mais relevante, homicídio qualificado. Questões cíveis de direitos fundamentais igualmente fora. Há obstrução mais grave que a prevaricação judicial na investigação de paternidade?
Extrusão é da metalurgia, passagem forçada de material (ferro, plástico) em matriz (molde), forjando-se a forma desejada. No direito criminal, o tipo penal é a matriz.
Aqui, porém, o fato da vida deve amoldar-se naturalmente, sem jamais forjar, à tipicidade.
Concluindo, na maioria dos casos ora ‘sub judice’, não há obstrução e sim extrusão da justiça, ou seja, tipicidade é forçada pelos agentes da justiça contrariados pelos embaraços lícitos à investigação de maneira a ganhar contornos de conduta criminosa a qual, na sua versão natural, não ostenta.