O supremo descontrole

Frederico Vasconcelos

Gilmar Mendes segura processo durante sete anos, derruba liminar que ele próprio concedeu e volta a retirar o caso da pauta.

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O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito. [ADI 3.367, rel. min. Cezar Peluso, j. 13-4-2005, P, DJ de 22-9-2006.]

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O Supremo Tribunal Federal não está subordinado ao Conselho Nacional de Justiça. Não existe a figura do corregedor-geral do Supremo. Não há controle de prazos em decisões monocráticas dos ministros do STF, que, muitas vezes, seguram as liminares e não submetem o entendimento pessoal ao julgamento do colegiado.

Eis um caso exemplar.

Sob o título “Após sete anos, é instaurado processo contra desembargadora“, o CNJ divulgou, no último dia 6, a abertura de processo administrativo disciplinar contra Ângela Maria Catão Alves, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, para apurar indícios de favorecimento em decisões quando a magistrada era juíza federal em Belo Horizonte.

As suspeitas contra a juíza foram levantadas durante a “Operação Passárgada”, deflagrada em 2007 pela Polícia Federal e Ministério Público Federal para apurar a liberação indevida de parcelas retidas pelo INSS do Fundo de Participação dos Municípios..

Em junho último, a recém-empossada conselheira Maria Tereza Uille (indicada para o CNJ pela Câmara dos Deputados) pediu vista do processo. Ela votou pela aprovação de uma decisão tomada pelo conselho em 2010, que ficou suspensa durante sete anos por liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes.

Uille foi acompanhada por dez conselheiros e pelo corregedor nacional.

Em 2010, o então relator, conselheiro José Adônis Callou de Araújo Sá, vislumbrou indícios de que Ângela Catão teria proferido decisões judiciais em afronta à Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), o que caracterizaria falta funcional.

A reabertura do caso foi possível porque o ministro do STF mudou seu entendimento sete anos depois.

Em abril deste ano, Gilmar cassou a liminar que ele mesmo havia deferido em mandado de segurança impetrado por Ângela Catão para suspender a instauração do processo no CNJ (*).

A notícia motivou protestos.

“O Gilmar atrasa, mas também corre, tudo depende de seu próprio discernimento e interesse”, comentou o desembargador Caetano Lagrasta Neto, aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

“Por que o Ministério Público Federal/Procuradoria-Geral da República não faz o controle do tempo que liminares ficam sem solução de mérito?”, perguntou a procuradora regional da República aposentada Ana Lúcia Amaral.

O advogado Henrique Júdice Magalhães –formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e licenciado em História– analisou o andamento do mandado de segurança.

Segundo sua avaliação, o CNJ ainda permanece sob o constrangimento de medidas tomadas pelo ministro relator.

A seguir, algumas observações:

1. O mandado de segurança foi impetrado em 3/12/2010 e concluso no mesmo dia para exame do pedido de liminar. Dias depois, em 15/12/2010, Gilmar Mendes deferiu a liminar, sem ouvir a autoridade impetrada (CNJ) nem o fiscal da lei (MPF/PGR), observa Magalhães.

2. Um dos fundamentos da liminar foi a “repercussão negativa” que a investigação disciplinar poderia ter para a juíza. A imprensa já registrara que o Ministério Público Federal havia denunciado ao Superior Tribunal de Justiça, como envolvidos na Operação Passárgada, os magistrados Ângela Catão, Francisco de Assis Betti e Weliton Militão dos Santos.

O processo no STJ foi marcado por incidentes que dificultaram o “bom andamento das investigações”. O relator, ministro Nilson Naves, determinou a supressão de trecho da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal que mencionava sua presença na posse de Ângela Catão no TRF-1.

O então subprocurador-geral da República Carlos Eduardo Vasconcelos explicou que “o trecho da narrativa delituosa suprimida destinava-se a demonstrar os sucessivos percalços e atrasos no curso das investigações”.

3. O caso era tão urgente a ponto de não se poderem esperar os 10 dias que a autoridade coatora (CNJ) tem para prestar informações?, pergunta o advogado.

4. A Advocacia Geral da União, órgão de representação judicial do CNJ, interpôs um recurso (agravo) à 2ª Turma contra a liminar em 22/02/2011, que foi concluso a Gilmar Mendes no mesmo dia. O ministro jamais julgou esse agravo e só pautou o mandado de segurança para a sessão de 27/04/2017, registra o advogado.

5. Na liminar, o ministro mandou intimar o MPF, o que não aconteceu. Em 13/7/2015, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu vista dos autos. Gilmar Mendes levou quatro meses para atendê-lo.

6. Em maio de 2016, Janot devolveu os autos com parecer contra o pedido da juíza. Opinou pela instauração de revisão disciplinar, porque havia “indícios suficientes de condutas incompatíveis com os deveres impostos à magistratura”. Gilmar Mendes levou quase um ano para incluir o caso na pauta da 2ª Turma.

A desembargadora alegou no mandado de segurança que o CNJ não poderia determinar a abertura da ação, sob pena de tornar-se “verdadeiro juízo recursal”, uma vez que o procedimento avulso no TRF-1 para apurar os fatos havia sido arquivado.

Ao opinar pela denegação da segurança, Janot reconheceu a hipótese de revisão disciplinar, “tendo em vista que a decisão do TRF-1, que negou a abertura de processo administrativo disciplinar, contraria a prova dos autos”.

Quando concedeu a liminar, Gilmar Mendes entendeu que “o TRF da 1ª Região teria apurado de forma aprofundada os fatos, sem contrariedade à evidência dos autos”.

Em abril deste ano, ao rever sua decisão, afirmou: “Não verifico qualquer ilegalidade em haver o CNJ determinado a abertura de procedimento administrativo a fim de apurar o ocorrido, ao entender pela existência de evidências não enfrentadas pela decisão administrativa do TRF, ou, pelo menos, ao vislumbrar que os fatos não foram apreciados com o aprofundamento necessário”.

7. Ao retirar o processo de pauta para revogar monocraticamente a liminar, Gilmar Mendes abriu a possibilidade de Ângela Catão oferecer um recurso (agravo), o que não caberia contra uma decisão colegiada, registra o advogado. O agravo foi interposto e seu julgamento agendado para 13/9/2017.

8. Na data marcada, Gilmar Mendes novamente retira o processo da pauta, mantendo sub judice a questão, “o que, pelo menos informalmente, representa um constrangimento ao CNJ”, segundo Henrique Júdice Magalhães.

Um ano atrás, este Blog anotou: “O Judiciário ganhará muito se a ministra Cármen Lúcia conseguir que os ministros do STF e os conselheiros do CNJ cumpram os regimentos internos e respeitem os prazos para proferirem seus votos e julgarem as liminares”.

Como afirma Joaquim Falcão, diretor da FGV Direito Rio e ex-conselheiro do CNJ, “pautar o processo e chamá-lo a julgamento são escolhas discricionárias de responsabilidade do presidente”.

Para usar uma linguagem que ficou conhecida no Supremo, como este Blog também já registrou, há ministros que mandam “às favas” o regimento interno e não são chamados “às falas”.

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(*) MS 30072