Portaria do trabalho escravo extrapola as leis

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Uma portaria inconstitucional“, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador-regional da República aposentado.

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I – OS FATOS

Uma portaria editada pelo Ministério do Trabalho e publicada no dia 16 de outubro de 2017 traz regras que dificultam o acesso à chamada “lista suja” de empregadores flagrados por trabalho escravono país. O texto também altera o modelo de fiscalização e abre brechas que podem dificultar a comprovação e punição desse tipo de crime.

De acordo com a nova portaria, a lista com o nome de empregadores autuados por submeter trabalhadores a situações análogas à escravidão passará a ser divulgada apenas com “determinação expressa do ministro”. Antes, a divulgação cabia à área técnica da pasta.

A medida, que atende aos interesses da bancada ruralista, ocorre em meio à análise da nova denúncia na Câmara dos Deputados contra o presidente Michel Temer.

O texto também prevê que a lista seja divulgada no site do Ministério do Trabalho duas vezes por ano, “no último dia útil dos meses de junho e novembro”. Portaria de maio de 2016 e que trata do mesmo tema, no entanto, permitia que a atualização da lista ocorresse “a qualquer tempo”, desde que não ultrapassasse periodicidade superior a seis meses.

As novas regras também alteram o modelo de trabalho dos auditores fiscais e elencam uma série de documentos necessários para que o processo possa ser aceito após a fiscalização.

Entre as medidas, estão a necessidade de que o auditor fiscal seja acompanhado, na fiscalização, por uma autoridade policial que deve registrar boletim de ocorrência sobre o caso. Sem esse documento, o processo não será recebido e, com isso, o empregador não será punido. Também é necessária a apresentação de um relatório assinado pelo grupo de fiscalização e que contenha, “obrigatoriamente”, fotos da ação e identificação dos envolvidos.

A portaria também traz novos conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante, incluindo, para que haja a identificação destes casos, a ocorrência de “privação da liberdade de ir e vir” –o que não constava nas definições adotadas anteriormente.

A portaria noticiada extrapola os limites legais no que concerne ao crime previsto no artigo 149 do Código Penal e ainda do artigo 301 do Código Penal no que concerne a prisão em flagrante facultativa.

II – A PORTARIA DIANTE DA LEI

Necessário estudar a natureza jurídica da portaria diante da lei.

Dir-se-ia que a Constituição assegura a retroatividade da “lei penal”. Ora, portaria não é lei penal. Lei penal é aquela aprovada pelo Congresso Nacional, dentro do regime da reserva de Parlamento.

Como bem ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, 17ª edição, pág. 337), que “se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que á não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta”.

Na lição de Paulino Jacques (Curso de Introdução à Ciência do Direito, 2ª edição, pág. 81), as instruções, normas típicas secundárias, dispõem, em geral, sobre a execução dos serviços públicos ou de normas legais ou regulamentares. Daí tem-se a lição de Carré de Malberg de que as instruções só produzem efeito “no interior do serviço, porque se originam do serviço e se editam em virtude das relações que o serviço engendra entre chefes e subalternos” (Teoria general del Estado, tradução de J. L. Degrete, México, 1948, pág. 605, n. 224), não obrigando assim os particulares.

Em verdade, com relação a portarias, há regras dadas às autoridades públicas, prescrevendo-lhes o modo por que devem organizar e pôr em andamento certos serviços.

Assim a revisão de um tipo penal somente pode ser realizada por outra lei. A espécie da prisão em flagrante somente poderá ser objeto de alteração por lei e não através de um ato administrativo.

III – O CRIME DO ARTIGO 149 DO CP

Dispõe o artigo 149 do Código Penal:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

I – contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)

Observa-se que a lei 10.803, de 11.12.2003, teve por objetivo atacar o problema brasileiro do “trabalho escravo”.

Em situações descritas no artigo 149 do Código Penal são alternativas e não cumulativas: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Não se trata de norma penal em branco. A portaria descrita em nada acrescenta ao tipo penal, trazendo apenas algumas orientações aos servidores envolvidos na fiscalização do trabalho.

Disse, aliás, Augusto Frederico Gaffrée Thompson, em Tese de concurso à docência livre de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que norma penal em branco, lei aberta, ou lei moldura, é norma penal específica, fragmentária e de complementação heterogênea, quanto ao preceito primário, adotando a definição de Giuseppe Maggiore, que dizia que se tratava de norma penal que, prevista em lei formal-material quanto à sanção e a um preceito genérico, necessita de ser complementada, relativamente ao modelo abstrato do crime nela inscrito, por um ato normativo emanado de fonte hierarquicamente inferior.

Paulo José da Costa Jr. leciona que não são as normas em branco incompletas ou imperfeitas. Faltam-lhes apenas, como ensinou Leone, concreação e atualidade. Não se trata, então, de uma sanção cominada à inobservância de um preceito futuro, mas de um preceito genérico, que irá concretizar-se com um elemento futuro, que deverá, entretanto, preceder o fato que constitui crime.

Para Rogério Greco, as normas penais em branco apenas conferem a órgão legislador extrapenal a possibilidade de precisar o seu conteúdo, fazendo-o, por inúmeras vezes, com maior rigor e mais detalhes do que os determinados tipos abertos, que dependem da imprecisa e subjetiva impressão do juiz.

Assim as normas penais em branco podem ser compostas de maneira complexa, mas nunca imperfeita, em respeito aos princípios da legalidade e da taxatividade, que são primordiais em matéria penal.

O sujeito passivo do crime é pessoa vinculada a uma relação de trabalho.

Exige-se o dolo como elemento subjetivo não sendo obrigatório o dolo específico.

O conceito de escravo deve ser analisado em sentido amplo, pois o crime pode configurar-se tanto na submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas como ainda no tocante à liberdade de locomoção.

Trata-se de crime material, comissivo (reduzir implica em ação), permanente, unissubjetivo e que admite tentativa, do que ensina Guilherme de Souza Nucci (Código penal anotado, 8ª edição).

Trabalho forçado é a atividade laborativa desenvolvida de maneira compulsória, sem voluntariedade, pois implica em alguma forma de coação caso não seja desempenhada a contento.

Anote-se que o cárcere privado é medida ilustrativa da condição de escravo. O tipo penal utiliza uma forma alternativa, bastando que o empregador submeta o trabalhador a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas ou a trabalho degradante ou mesmo a uma situação de vínculo obrigatório com o local de trabalho, através do artifício de constituir o trabalhador em devedor, como exemplo, em loja pertencente ao próprio patrão.

O disposto nos incisos I e II do parágrafo primeiro do artigo 149, constituem tipos básicos autônomos embora sujeitos às mesmas penas da conduta prevista no caput. O tipo penal previsto prevê a conduta de cerceamento de meio de transporte. No caso do inciso I, a conduta típica prevê a restrição à livre opção do trabalhador de se ausentar do lugar de trabalho, valendo-se do meio de transporte que deseje e seja apto a tanto.

Se o crime é cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, de etnia, religião ou de origem, há causa de aumento da pena.

IV – AFRONTA ÀS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DA OIT

Anotem-se as convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, “ao condicionar a caracterização do trabalho escravo contemporâneo à restrição da liberdade de locomoção da vítima.”

Convenção: 29

Trabalho Forçado ou Obrigatório

Adoção OIT: 1930

Ratificação Brasil: 25/04/1957

A convenção 105 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, juntamente com a convenção 29, faz parte do arcabouço normativo internacional no combate à escravidão contemporânea. Qualquer país que ratifique o documento “se compromete a suprimir o trabalho forçado ou obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma”. A declaração detalha e sanciona diferentes configurações do trabalho forçado, como aquelas resultantes da punição a pessoas com opiniões políticas divergentes ou a grevistas, da mobilização para obras de desenvolvimento econômico, de medida disciplinar no espaço de trabalho ou decorrente de discriminação de determinados grupos.

O texto lembra também a convenção de proteção do salário de 1949, que garante o pagamento realizado em intervalos regulares. A intenção é assegurar condições reais para que os trabalhadores optem por deixar seus empregos quando sentirem a necessidade, sem estarem presos à espera de um pagamento.

A Organização Internacional do Trabalho é uma organização criada pelo Tratado de Paz de 1919 (Tratado de Versailles), como parte da Sociedade das Nações (artigo 6º), da qual recebia a receita necessária à satisfação de suas atividades. Anos mais tarde, em outubro de 1946, a organização incorporou a Declaração da Filadélfia, de 1944, como anexo à Constituição da OIT.

Em regra, as convenções da OIT têm estabelecido que sua vigência internacional se inicia após o prazo de doze meses do registro de pelo menos duas ratificações no Bureau Internacional do Trabalho, competetindo ao Diretor-Geral desse Bureau comunicar tal data a todos os Estados-membros da Organização. Uma vez em vigor internacional, a convenção obrigará cada um dos seus Estados-partes em relação à OIT, doze meses após a data em que registrar a respectiva ratificação.

Podem ser denunciados após um período de dez anos. Mas, anote-se que as conveções da OIT têm vigência indeterminada, pois são tratados permanentes. A saida de uma parte da convenção não prejudica a execução integral do tratado em relçaão às demais partes no acordo.

Mister que se anote que depois de adotadas na Conferência, as convenções internacionais do trabalho seguem basicamente o mesmo trâmite interno de qualquer outro tratado internacional em devida forma celebrado pelo Estado brasileiro, à diferença inicial que tais convenções do trabalho dispensam a formalidade da assinatura, visto que a Conferência a adota, garantindo a autenticidade do texto apenas duas assinaturas: a do presidente e a do secretário-geral da Conferência, como explicou Francisco Rezek, Direito dos tratados, pág. 160 e 161). Como explicou Valério de Oliveira Mazzuoli (Curso de Direito Internacional Público, terceira edição, pág. 901), afora isso, a integração das convenções da OIT ao direito brasileiro dá-se da mesma forma que qualquer outro tratado, devendo, por igual, respeitar as regras gerais dos Direitos dos Tratados e as normas internas relativas à sua celebração previstas na Constituição, em particular, os artigos 84, inciso VIII, e ainda artigo 49, inciso I, que tratam, respectivamente, da competência do presidente da República para concluir tratados e do Congresso Nacional para referendâ-los, autorizando a sua posterior ratificação por parte do governo.

Em sendo as convenções internacionais do trabalho verdadeiros tratados internacionais que versam sobre direitos humanos(notadamente direitos sociais), sua integração ao direito brasileiro dá-se com o status de norma materialmente constitucional em virtude da prescrição do artigo 5º, parágrafo segundo, da Constituição de 1988.

As convenções internacionais do trabalho ratificadas pelo Brasil, para além do seu status materialmente constitucional, poderão ter os efeitos formais das emendas constitucionais.

O status materialmente constitucional das convenções internacionais do trabalho reforça o argumento de sua aplicabilidade imediata a partir das respectivas ratificações.

Observo o artigo 19, § 8º, da Constituição da OIT onde se diz:

“Em caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado-membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação”.

Que são recomendações da OIT? As recomendações da OIT são instrumentos internacionais, destituídos da natureza de tratados, adotados pela Conferência Internacional do Trabalho, sempre que a matéria nele versada não seja objeto de uma Convenção.

O artigo 19, § 6, alíneas b e d da Constitução da OIT obriga cada um dos seus Estados-membros submeter a recomendação à autoridade interna competente para que esta a transforme em lei ou tome medidas de outra natureza em relação a matéria nele versada.

Assim, as recomendações da OIT não entram na categoria de tratados internacionais. Sâo propostas e sugestões feitas aos seus Estados-membros relativamente a questões ligadas ao direito do trabalho não estabelecidas em convenções internacionais.

Essa disposição ultrapassa aquilo que concerne exclusivamente às leis, para ainda dizer respeito às sentenças, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação. Há a chamada prevalência das normas mais favoráveis ao trabalhador.

O artigo 37, § § 1º e 2º, da Constituição da OIT, prevê dois procedimentos para a resolução das dificuldades encontradas para a interpretação da Constitução e das convenções internacionais do trabalho adotadas na Conferência. Pelos termos do § 1º, tem que “quaisquer questões de dificuldades relativas à interpretação da presente Constituição e das convenções ulteriores concluídas pelos Estados-membros, em virtude da mesma, serão submetidas à apreciação da Corte Internacional de Justiça”. Mas, não obstante tal disposição, diz ainda a Constituição da OIT que o Conselho de Administração poderá “formular e submeter à aprovação da Conferência, regras destinadas a instruir um tribunal para resolver com presteza qualquer questão ou dificuldade relativa à interpretação de uma convenção que a ele seja levada pelo Conselho de Administração, ou, segundo o prescrito na referida convenção”(artigo 37, § 2º). Esse tribunal especial da OIT, criado em virtude do citado parágrafo segundo do artigo 37, deverá regular seus atos pelas decisões ou pareceres consultivos da Corte Internacional de Justiça, devendo qualquer sentença por ele pronunciada ser comunicada aos Estados-membros da OIT, cujas disposições a ela relativas serão transmitidas à Conferência.

V – A PRISÃO EM FLAGRANTE

A lei afirma que qualquer pessoa do povo pode prender em flagrante, enquanto as autoridades policiais e seus agentes devem efetuar a prisão em flagrante (art. 301 do CPP). Portanto, o ordenamento cria o flagrante facultativo, que é aquele efetivado por qualquer pessoa do povo, e o flagrante obrigatório, que é realizado pela autoridade policial ou por seus agentes.

Ora, o próprio agente público ao verificar a existência do crime tem permitida por lei a execução da prisão em flagrante facultativa. Não pode portaria limitar o que a lei determina, por óbvio.

Entretanto, essa obrigatoriedade é atenuada pela possibilidade de ação controlada. Nas hipóteses de crimes resultantes da atuação de organizações criminosas a interdição policial pode ser retardada, mantendo os agentes criminosos sob investigação para efetuar a prisão em flagrante no momento mais propício para colheita de provas (art. 2.º, II da Lei n.º 9.034/95).

As demais espécies de prisão em flagrante encontram-se consagradas no artigo 302 do Código de Processo Penal.

O flagrante próprio (ou real) está consagrado nos incisos I e II do artigo 302 do Código de Processo Penal e ocorre quando o agente está cometendo o crime ou acabou de cometê-lo. Portanto, ocorre quando o agente ainda está cometendo o crime ou acabou de cometê-lo, sem que tenha transcorrido qualquer intervalo de tempo considerável entre o término do cometimento do crime e a efetivação da prisão.

No inciso III do dispositivo legal citado encontra-se consagrado o flagrante impróprio (ou quase flagrante), que ocorre quando o agente é perseguido logo após o crime em uma situação que nos faça presumir ser ele o autor deste crime. Há um intervalo de tempo um pouco maior entre a prática do crime e o início da perseguição do agente se comparado àquele intervalo, praticamente inexistente, consagrado no inciso II entre o fim da prática do delito e a prisão.