Embates do Judiciário nos 10 anos do Blog
O Blog “Interesse Público” faz 10 anos nesta terça-feira (31). O objetivo inicial permanece.
O site é uma extensão do meu trabalho na Folha, onde faço reportagens sobre o Judiciário, Ministério Público e advocacia.
Nesse período, a Folha e o UOL garantiram o exercício de um jornalismo plural e independente.
Minha primeira surpresa ao entrar na blogosfera foi descobrir que muitos juízes tinham seus próprios blogs ou participavam ativamente de grupos de discussão na internet.
O Blog foi pioneiro na cobertura diária do Judiciário como instituição, realizando jornalismo investigativo num Poder ainda fechado, criando, ao mesmo tempo, um espaço para o diálogo democrático entre os operadores do direito.
O Blog foi contemporâneo dos embates iniciais entre a magistratura e o Conselho Nacional de Justiça, a exemplo da resistência à eliminação do nepotismo nos tribunais.
No Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por exemplo, o holerite dos magistrados era conhecido entre os servidores como “salário-família”. Pelo menos 12 desembargadores mantinham suas mulheres na folha de pagamento do tribunal sem prestar concurso.
O então presidente da Anamages (Associação Nacional dos Magistrados Estaduais), entidade que questionou no STF a resolução do CNJ contra o nepotismo, tinha a mulher e a sogra no tribunal mineiro. Um ex-corregedor mantinha em seu gabinete a mulher e a filha. Um ex-presidente da corte tinha seis parentes no tribunal.
Um desembargador, prestes a se aposentar, fez permuta com o filho juiz, que trabalhava numa vara do interior. O expediente garantiu ao jovem antecipar em vários anos a “promoção” para atuar na capital.
O nepotismo cruzado era comum. Às vésperas de atingir a aposentadoria compulsória, um desembargador conseguiu transferir de seu gabinete para o gabinete do filho, também desembargador, uma advogada de suas relações, que contratara como assessora. O arranjo previa que ela receberia os vencimentos sem ir ao tribunal.
O Tribunal de Justiça de São Paulo foi considerado o mais resistente ao CNJ e à atuação da então corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon. Magistrados paulistas até hoje antipatizam com a ex-corregedora por causa da afirmação de que havia “bandidos de toga” no Judiciário.
Essa indisposição não foi reduzida nem mesmo quando o tribunal afastou membros da corte. Ela sempre realçou que a corrupção era um problema grave, gravíssimo em alguns casos, mas alcançava uma minoria.
Em 2013, na gestão do presidente Ivan Sartori, o Órgão Especial do TJ-SP decretou o afastamento cautelar de um desembargador acusado de pedir R$ 35 mil para julgar favoravelmente um recurso.
Em 2015, por unanimidade, o Órgão Especial do TJ-SP acompanhou o voto do presidente José Renato Nalini, que propôs o afastamento cautelar de um desembargador acusado de conceder liminar de soltura de um traficante sem a devida fundamentação.
Numa das gestões do TJ-SP, o então presidente da corte estadual não recebia o presidente do CNJ.
A aproximação do CNJ com o tribunal de São Paulo ocorreu na gestão do desembargador Renato Nalini, quando o ministro Joaquim Barbosa foi recebido com simpatia por magistrados e com aplausos dos servidores.
Deve-se ao então presidente Ivan Sartori a confirmação de que o TJ paulista mantinha uma folha de pagamento paralela, processada fora do tribunal, sob controle de uma servidora que se recusou inicialmente a entregar seu computador ao CNJ.
O conselho nacional tinha conhecimento sobre os pagamentos irregulares havia pelo menos dois anos, pois a informação fora fornecida pela associação dos servidores.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por sua vez, oferecia projeto de lei à Assembleia Legislativa, criando benefícios adicionais para a magistratura estadual, propostas que eram aprovadas pelo então governador Sérgio Cabral (PMDB). O Ministério Público Federal contesta leis estaduais que usurpariam a competência do Supremo, em ação que até hoje não foi levada a julgamento no plenário.
Um resumo de distorções colhidas nesses dez anos de Blog encontra-se na exposição que fiz, no dia 4 de setembro, para cerca de 300 magistrados e conselheiros a convite do CNJ. Na ocasião, transmiti observações pessoais e críticas de leitores. A íntegra está disponível neste link.
Eis outros temas e fatos marcantes que estiveram nas páginas do blog nesses dez anos:
1) Tentativas de ministros do STF de afastar o juiz Sérgio Moro dos processos da Lava Jato.
Em maio de 2013, a 2ª Turma do STF rejeitou habeas corpus impetrado em 2008 por um doleiro condenado a nove anos de prisão no caso Banestado. Ele pretendia afastar o juiz Sergio Moro, alegando parcialidade. Mas a Turma acompanhou o voto do ministro Gilmar Mendes, que inovou, determinando o envio dos autos ao CNJ e ao TRF-4, para averiguar se o juiz cometera infração disciplinar. Gilmar considerou que o magistrado teve condutas “censuráveis e até mesmo desastradas”.
Em março de 2016, o então corregedor do TRF-4, desembargador Celso Kipper, determinou a quebra do sigilo do caso e o fornecimento ao Blog de cópia de sua decisão de arquivamento.
Kipper entendeu que o sigilo é o que poderia prejudicar a imagem do magistrado da Lava Jato.
2 – O contraste entre as condições de trabalho da magistratura de primeiro grau e as dos tribunais estaduais e cortes superiores.
3 – Enquete sobre as práticas adotadas para o acesso de advogados aos gabinetes de magistrados.
4 – A prescrição de crimes no caso Banestado, o que beneficiou ex-diretores do banco. Em um ano, o juiz Sergio Moro recebeu a denúncia envolvendo 20 réus e proferiu a sentença condenatória. O processo tramitou durante cinco anos no TRF-4 e permaneceu mais de um ano na Procuradoria-Geral da República.
5 – O Blog fez vários posts sobre as condições de saúde de magistrados e de servidores do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (com base em pesquisa do médico Herval Pina Ribeiro, da USP).
6 – Sucessivas chicanas e uma cascata de recursos retardaram a punição do juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto, do ex-senador Luiz Estevão de Oliveira e dos empresários Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Ferraz, denunciados pelo desvio de recursos na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo.
Em maio de 2006, a 5ª Turma do TRF-3, por unanimidade, reformara uma controvertida sentença de absolvição, condenando Ferraz a 27 anos e oito meses de prisão. A sessão foi realizada um dia antes da prescrição dos crimes.
Na véspera desse julgamento, Ferraz desconstituiu seu advogado, impedindo-o de atuar naquele processo. Mas o advogado continuou seu patrono em outros processos.
Em junho de 2014, Ferraz foi beneficiado por um empate em julgamento na 1ª Turma do Supremo, onde alegou –oito anos depois– cerceamento de defesa.
Esse argumento foi sustentado por seu novo advogado, o ex-ministro do STF e ex-procurador geral da República Sepúlveda Pertence.
7 – A falta de continuidade na gestão dos tribunais, que, a cada dois anos, mudam a administração.
8 – As suspeitas de irregularidades em concursos de tribunais. Um concurso do TJ-MG foi questionado no CNJ porque, entre os candidatos aprovados, 20 eram parentes de juízes –entre os quais duas filhas do então presidente.
5 – O Blog registrou o esvaziamento do CNJ na gestão do ministro Ricardo Lewandowski. Em várias ocasiões, ele não cumpriu o regimento interno, não deu prioridade ao julgamento de liminares, reduziu a duração das sessões e não deu maior atenção aos prazos para retomada dos julgamentos de processos interrompidos por pedidos de vista.
6 – Uma liminar do ministro Luiz Fux, do STF –em ação não julgada até hoje– abriu a porteira para a concessão do auxílio-moradia a magistrados e membros do Ministério Público.
7 – Desde maio de 2012, o ministro Fux não leva a julgamento uma ação que questiona vantagens e gratificações, os chamados “penduricalhos” concedidos a magistrados do Rio de Janeiro.
8 – O Blog antecipou o desgaste da advocacia no enfrentamento com o ministro Joaquim Barbosa, durante o julgamento do mensalão, que resultou na prisão de réus na Ação Penal 470.
9 – O site revelou irregularidades e descontrole em obras de tribunais, como o superfaturamento na construção de sedes majestáticas.
O TJ-MG inaugurou pedra fundamental, com urna que guardaria documentos sobre a construção de uma nova sede. A obra foi suspensa depois, por suspeita de corrupção. O TJ-SP inaugurou, em final de gestão, uma placa no cavalete, pois as obras de um prédio não haviam sido concluídas.
10 – As tentativas de redução do poder de investigação do Ministério Público.
11 – Os limites do CNMP, que até 2009 não havia feito nenhuma correição das unidades do MPF.
12 -As tentativas do CNJ de proibir eventos de magistrados com patrocínio de empresas, prática também adotada pelo Ministério Público.
13 – Punições aplicadas pelo Ministério Público estadual foram revistas no CNMP em nome da autonomia administrativa dos MPs estaduais.