Dodge vê retrocesso social em decisão sobre o Enem

Frederico Vasconcelos

Procuradora-geral da República pede suspensão de liminar que impede anulação de redações com ofensa aos direitos humanos.

 

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF), nesta sexta-feira (3), a suspensão da liminar que impede a aplicação da regra que atribui nota zero à redação com conteúdo ofensivo aos direitos humanos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2017.

A informação a seguir foi divulgada pelo Ministério Público Federal.

Para a PGR, a medida gera insegurança jurídica aos candidatos, já que a prova será realizada neste domingo (5), além de configurar retrocesso social.

“Toda a preparação dos participantes do Enem 2017 foi realizada com base nas regras contidas no edital do certame, dentre as quais a necessidade de respeito aos direitos humanos prevista no item 14.9.4”, argumenta. A liminar questionada foi concedida pela maioria da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que acolheu pedido da Escola Sem Partido Treinamento e Aperfeiçoamento.

No pedido ao STF, Raquel Dodge argumenta que a suspensão da regra pode causar grave lesão à ordem pública, dada a proximidade do certame. Ela lembra que a necessidade de respeito aos direitos humanos na redação, sob pena de o candidato receber nota zero, consta nos editais das provas do Enem desde 2013, conforme exigência das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos de 2012. “Nada há de ilegítimo, na regra em si, que pudesse ensejar a interferência do Judiciário e a retirada do item da lei do concurso”, sustenta.

Além disso, na decisão do TRF, segundo ela, a liberdade de expressão é tomada como garantia absoluta, desconsiderando outros direitos fundamentais. A própria Constituição limita esse direito fundamental ao prever punição para atos de discriminação que atentem contra direitos e liberdades fundamentais, além de atos de racismo. “Não existe garantia constitucional absoluta e há limites ao exercício do direito de liberdade de manifestação, impostos pela Constituição e por tratados internacionais de direitos humanos, ignorados pelo julgador na origem”, afirma.

É o caso, por exemplo, da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que proíbem propagandas e atos com apologia ao ódio racial ou religioso. Há, ainda, jurisprudência do STF no sentido de que as liberdades públicas não são incondicionais, devendo prevalecer os princípios da dignidade humana e da igualdade jurídica. A Suprema Corte também já admitiu que o Estado pode impedir o ingresso de candidato no serviço público quando ostentar em seu corpo tatuagem ofensiva aos direitos humanos.

Nesse mesmo sentido, segundo a PGR, o Enem possibilita o aceso de estudantes às universidades públicas, custeadas pelo Estado que tem o dever perante a comunidade nacional e internacional de garantir e propagar o respeito aos direitos humanos. Essa lógica, segundo Raquel Dodge, legitima a previsão de critério de correção de redação que imponha o respeito a esses direitos. “A regra não destoa dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, estando, mais que isso, em plena harmonia com os valores constitucionais e convencionais consolidados e almejados pela coletividade”, reforça.

A PGR também afasta o argumento dos autores do pedido de que a aplicação da regra implicaria em falta de objetividade na correção das provas e na imposição de determinada ideologia política. Segundo ela, a avaliação de qualquer prova dissertativa envolve certo grau de subjetividade, que é reduzido por providências tomadas pelos organizadores da prova na redação do manual e nas regras de correção adotadas.

O manual do Enem dedica um capítulo à definição de direitos humanos e detalha os casos que poderão ser considerados ofensivos capazes de anular a redação. Além disso, cada redação é corrigida por, no mínimo, dois avaliadores e, em caso de avaliações discrepantes, um terceiro analisa a resposta. Todos os avaliadores também são submetidos a treinamento, o que reduz a carga de subjetividade do trabalho, segundo a PGR.

No pedido, Raquel Dodge lembra que no Enem de 2016, dos 6,1 milhões estudantes que fizeram a prova, apenas 4.798 obtiveram nota zero na redação por ferirem direitos humanos. Ela alerta ainda para o risco de a liminar concedida pelo TRF1 – que é uma decisão provisória – ter efeito definitivo. Isso porque, após a aplicação das provas, não será mais possível usar esse critério de correção, ainda que a decisão seja revertida no futuro.