Realidade do cárcere além de Papuda e Benfica

Frederico Vasconcelos

O Defensor Público-Geral do Estado de São Paulo, Davi Depiné, chama a atenção para “o sistema prisional real, gigante e massivo”, muito distante daquele associado ao destino de réus condenados de alto poder político ou econômico.

“A questão prisional é uma pauta civilizatória urgente para o Brasil”, diz.

“Em geral, as pessoas se posicionam contrárias a recursos de defesa, pensando com isso afastar manobras protelatórias que evitariam a impunidade. Mas os números nos mostram uma realidade muito mais complexa e nuançada – e que impacta diretamente nossa vergonhosa superpopulação carcerária”, afirma Depiné.

Ele cita que a Defensoria Pública de São Paulo alcançou em 2017 um índice de sucesso –-total ou parcial-– de 51% de todos os habeas corpus que impetra perante o STJ.

“Isso significa que muitas vezes as decisões de tribunais estaduais ou federais não estão de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores”.

Existem gargalos nos procedimentos de comunicação.

“Esses entraves possuem uma face perversa: afetam principalmente as pessoas condenadas por crimes menos graves. Quanto menor a pena aplicada, maior a chance de não ser possível reconhecer seus benefícios ou a própria liberdade no tempo estabelecido por lei.”

“Há muito o que fazer para tornarmos o sistema penal mais inteligente, republicano e civilizado”, diz o defensor-geral paulista.

Davi Depiné é mestre em direito processual penal pela USP.

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Nunca debatemos tanto o processo penal. Neste último ano, tornou-se ainda mais comum que rodas de conversas enveredassem por delações premiadas, condenações, recursos, vídeos de depoimentos judiciais, sistema carcerário, indultos e outros temas afins.

É compreensível que o foco dessas discussões se volte para os casos de grande repercussão, já que nosso noticiário diário é dominado pelas investigações contra réus de alto poder político ou econômico. Afinal, não se pode diminuir a importância de processos alcançarem pessoas e cargos antes percebidos como imunes à lei.

Mas não podemos correr o risco de sermos cegados pela luz dos holofotes. O sistema prisional real, gigante e massivo é composto em sua totalidade por um perfil muito distinto de brasileiros.

Começamos o ano de 2017 em janeiro com uma das mais graves crises do sistema prisional de nossa história. Em apenas 15 dias, mais de 120 pessoas foram mortas dentro das prisões de diversos Estados, muitas das vezes em episódios relativos a disputas entre facções criminosas. As cenas de horror que correram o mundo demonstraram mais uma vez que a questão prisional é uma pauta civilizatória urgente para o Brasil.

Poucos talvez tenham percebido que, ao fim do ano, em dezembro, dados divulgados pelo Ministério da Justiça revelaram que o Brasil atingiu a marca de 699 mil presos, tornando-se a terceira maior população carcerária do mundo, após ultrapassar a Rússia. Em números relativos, também temos a terceira maior taxa de encarceramento por 100 mil habitantes, à frente da China.

Essa desproporção entre os poucos casos de grande repercussão e as centenas de milhares de casos de pessoas anônimas gera ruídos em importantes debates.

Nos últimos meses, muito se falou sobre a questão da prisão após a condenação em segundo grau. Em geral, as pessoas se posicionam contrárias a recursos de defesa, pensando com isso afastar manobras protelatórias que evitariam a impunidade. Mas os números nos mostram uma realidade muito mais complexa e nuançada – e que impacta diretamente nossa vergonhosa superpopulação carcerária.

A Defensoria Pública de São Paulo alcançou neste ano um índice de sucesso – total ou parcial – de 51% de todos os habeas corpus que impetra perante o STJ.

Isso significa que muitas vezes as decisões de tribunais estaduais ou federais não estão de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores. Ainda segundo reportagem recente do portal Jota, 45% do volume total de habeas corpus concedidos pelo STF desde 2009 foram impetrados pelas Defensorias Públicas do País.

Se queremos um sistema penal que funcione de maneira coerente, deveríamos debater primeiramente as maneiras de se garantir que diretrizes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre garantias individuais sejam observadas em instâncias inferiores, o que inclusive afastaria a necessidade de massificação de habeas corpus.

Outro ponto que merece séria atenção é o necessário aperfeiçoamento das execuções de pena no Brasil.

Muitas vezes, cidadãos anônimos ficam presos além do tempo previsto em lei por conta da demora na análise de seus casos. A burocracia processual pode demorar meses para uma simples transmissão de informação.

Existem gargalos nos procedimentos de comunicação entre os órgãos de um mesmo tribunal, carentes de maior estrutura operacional e humana. Os mesmos gargalos também alcançam as Defensorias Públicas, ainda não estruturadas adequadamente em boa parte do país.

Esses entraves possuem uma face perversa: afetam principalmente as pessoas condenadas por crimes menos graves. Quanto menor a pena aplicada, maior a chance de não ser possível reconhecer seus benefícios ou a própria liberdade no tempo estabelecido por lei.

Parte da questão decorre de um modelo que separa responsabilidades. O Executivo costuma ser cobrado pela gestão das penitenciárias que administra e pela superlotação, mas também é obrigado a gerir uma realidade em que os fluxos de entrada e saída não estão sob seu controle.

É necessária uma integração perene entre os atores envolvidos. Etapas burocráticas desnecessárias devem ser superadas. Sistemas podem automatizar cálculos e agilizar processos. A informação deve ser fluida e compartilhada, contornando a realidade que ainda impera de plataformas eletrônicas de órgãos públicos que não conversam entre si.

Uma recente parceria entre a Defensoria Pública e a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo tem permitido uma comunicação direta entre Diretores de estabelecimentos prisionais e Defensores Públicos, permitindo um olhar para os “esquecidos no sistema prisional”, com foco especial nas prisões provisórias de longa duração.

Ainda assim, infelizmente deparamo-nos com situações como a verificada no início de dezembro, em que uma pessoa estava presa há quase 1 ano sem sequer ter sido citada na ação penal, acusada de tráfico de 0,26 gramas de crack.

Há muito o que fazer para tornarmos o sistema penal mais inteligente, republicano e civilizado. O custo do encarceramento em massa não é apenas financeiro, mas também social e humano. Um primeiro passo para isso é não ignorarmos que a realidade do cárcere no Brasil, muito além das alas da Papuda e de Benfica, ainda é incompatível com o papel ressocializador que deveria ser inerente à sanção penal.