Cultura da sentença e acesso à ordem jurídica justa

Frederico Vasconcelos

Especialista em mediação e conciliação, o professor da Faculdade de Direito da USP Kazuo Watanabe diz que a grande transformação no Judiciário brasileiro nos últimos anos foi a atualização do conceito de “acesso à justiça” para “acesso à ordem jurídica justa”.

No conceito tradicional, trata-se de acesso ao Judiciário para obtenção de tutela jurisdicional contra ofensa a algum direito.

O conceito atualizado proclama que “os jurisdicionados têm direito não somente ao mecanismo tradicional de solução de controvérsias –a adjudicação de solução por meio de sentença–, e sim a todos os mecanismos adequados de solução de conflitos de interesses, em especial os meios consensuais, que são a mediação e a conciliação”.

Essa política judiciária foi acolhida pelo novo Código de Processo Civil (CPC) e pela Lei de Mediação.

“Ainda prevalece a ‘cultura da sentença’, que vê na solução adjudicada por meio de sentença a atividade mais nobre do juiz, quando o escopo mais importante da atividade jurisdicional deve ser a pacificação social”, diz o especialista.

Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou prazos para a criação das unidades encarregadas de atendimento aos jurisdicionados por meio de conciliação, mediação e orientação [Centro Judiciário de Solução Consensual de Conflitos, Cejusc].

“Os tribunais locais não conseguiram dar cumprimento pleno à determinação e somente nos últimos dois anos começaram a ser criados esses centros”, diz Watanabe.

O programa “Justiça em Números” reconhece que, apesar da inovação trazida pelo novo CPC, “o índice de soluções amigáveis não registrou o incremento esperado”.

A expectativa de Watanabe é que essa transformação no Judiciário “seja completada e aperfeiçoada em 2018”.

Kazuo Watanabe é Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Professor-Doutor Sênior da Faculdade de Direito da USP.
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Há vários fatos positivos e negativos ligados ao desempenho do Judiciário e de seus membros ao longo de 2017. Muitos deles, como os ligados à Lava Jato e outras apurações de corrupção pública e privada, vêm sendo acompanhados de perto pelo público em geral.

Certamente, esses casos, e outros mais, terão grande influência na transformação da sociedade brasileira e no prestígio (ou desprestígio) do Judiciário e de outras instituições envolvidas nessas apurações.

A minha principal preocupação, porém, diz com a atuação do Judiciário ao longo do último meio século, mais precisamente a partir da década de 1960 (passei a integrar a Magistratura Paulista em 1962), para saber em que medida tem ocorrido aperfeiçoamentos em nosso Judiciário para se adequar às grandes transformações ocorridas na sociedade brasileiras nesse lapso de tempo.

Refiro-me mais às suas atribuições funcionais, porquanto a adequação de suas infraestruturas material e pessoal está na dependência de recursos orçamentários, cuja análise está fora dos objetivos deste artigo.

Segundo minha percepção, as profundas transformações no papel do Judiciário passaram a ocorrer a partir da década de 1980. Até então, preso aos princípios do Estado liberal, o nosso Judiciário vinha cumprindo basicamente o papel de garantidor de direitos, com a “visão de mundo passadista”, sem preocupação com as transformações sócio-político-econômicas que estavam a exigir uma visão mais aberta e atitudes mais voltadas para o futuro.

As violações à ordem jurídica, principalmente por parte do Estado, não decorrem apenas de atos, sendo mais graves as que resultam de omissões, seja na edição de leis e regulamentos, seja na “implementação de políticas públicas necessárias à satisfação dos direitos econômicos, sociais ou culturais” (Comparato).

Bem por isso, as atuações do Judiciário passaram a cuidar também de prover soluções para o futuro, não apenas corrigindo as violações ocorridas, como implementando políticas públicas já definidas na Constituição ou em programas de governo.

As transformações revolucionárias passam a ocorrer, no plano de Direito Processual Civil, que é o instrumento básico do Judiciário para o exercício de suas atribuições, com a aprovação da Lei dos Juizados Especiais de Pequenas Causas em 1984 (Lei nº 7.244), da Lei da Ação Civil Pública em 1985 (Lei nº 7.347), com a nova Constituição Federal em 1988 e o Código de Defesa do Consumidor em 1990.

A lei das pequenas causas passou a facilitar o acesso à justiça para a camada mais humilde da população. Hoje, os Juizados Especiais Cíveis, embora assentados nos mesmos princípios, ampliou excessivamente a competência, o que vem determinando o seu congestionamento e desempenho mais acanhado.

A Lei da Ação Civil Pública instituiu no ordenamento jurídico brasileiro a tutela coletiva e assegurou o acesso à Justiça aos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

O Código de Defesa do Consumidor, além de consagrar novos direitos para a proteção dos consumidores, aperfeiçoou, na parte processual, a tutela coletiva criada pela Lei de 1985.

A nova Constituição Federal, além dos direitos fundamentais individuais e coletivos, criou um elenco de direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais, declarando sua “aplicabilidade imediata”, o que tem gerado uma série de demandas pela imediata aplicação de muitos desses direitos (como na área de saúde, ensino e moradia), demandas essas que têm sido denominadas de “judicialização da política” (uma vez que diz com a implementação de política pública, descumprida ou não implementada).

É importante notar que não se trata de indevida intromissão do Judiciário na área de competência de outros Poderes, e sim de exercício legítimo do “judicial review”, isto é, do controle difuso da constitucionalidade das leis e atos, que o nosso sistema jurídico, sob a influência do sistema americano, vem adotando desde a primeira Constituição da Republica, e foi ampliado na nova Constituição, que explicitou a admissibilidade do controle da constitucionalidade por omissão e criou instrumentos processuais adequados ao cumprimento pelo Judiciário da jurisdição constitucional.

É certo que há situações limites em que é difícil o estabelecimento do limite preciso para o exercício desse controle jurisdicional, mormente em se tratando de inconstitucionalidade por omissão, cujo controle a Constituição de 1988 expressamente consagrou. Mas, desde que exercido adequadamente, é uma função necessária.

Mas, o que em meu sentir vem ocorrendo de fundamental, a partir das transformações acima mencionadas, é a atualização do conceito de “acesso à Justiça”.

No conceito tradicional, o “acesso à Justiça” consistia no acesso a um dos órgãos do Judiciário para a obtenção de tutela jurisdicional contra ofensa a algum direito.
Mas a percepção da doutrina foi se encaminhando no sentido de entender que o acesso a ser assegurado ao jurisdicionado deve ser muito mais do que mero acesso aos órgãos do Judiciário, e sim “acesso à ordem jurídica justa”.

O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 125/2010, acolheu esse conceito atualizado de acesso à justiça e instituiu a política judiciária nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses, proclamando que os jurisdicionados têm direito não somente ao mecanismo tradicional de solução de controvérsias, que é o da adjudicação de solução por meio de sentença, e sim a todos os mecanismos adequados de solução de conflitos de interesses, em especial os meios consensuais, que são a mediação e a conciliação.

E assegurou, ainda, o direito à orientação e informação para a solução de dúvidas e problemas jurídicos, e não apenas direito à solução dos conflitos. Essa política judiciária foi acolhida por inteiro pelo novo Código de Processo Civil e pela Lei de Mediação.

A unidade judiciária encarregada de dar atendimento aos jurisdicionados por meio de conciliação, mediação e orientação, é o Centro Judiciário de Solução Consensual de Conflitos (art. 165, CPC), conhecido pelo nome de Cejusc.

Embora a Resolução 125 do CNJ tivesse criado, em 2010, prazos para a criação desses centros, os Tribunais locais não conseguiram dar cumprimento pleno à determinação e somente nos últimos dois anos começaram a ser criados esses centros.

O Tribunal de Justiça de e São Paulo já tem mais de 250 Cejusc. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais , em balanço recentemente publicado, dá conta da instalação de inúmeros Cejusc.

No Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que tive a oportunidade de visitar recentemente, estava faltando apenas um para ter todos os Cejusc necessários.

O CNJ vem dedicando especial atenção para monitorar o efetivo cumprimento pelos Estados dessa obrigação legal de criar Cejusc para assegurar a todos os jurisdicionados pleno acesso à ordem jurídica justa.

Certamente, estão faltando várias providências para que a organização do nosso Judiciário atinja o estágio mais próximo da perfeição. E a principal delas é a mudança de mentalidade dos juízes e dos operadores do direito em geral (advogados, promotores, defensores públicos, procuradores e dos funcionários que lidam com esses novos mecanismos de solução de controvérsias).

Ainda prevalece a “cultura da sentença”, a que vê na solução adjudicada por meio de sentença a atividade mais nobre do juiz, quando o escopo mais importante da atividade jurisdicional deve ser a pacificação social.

Hoje, não há mais dúvidas de que há vários mecanismos adequados de solução de conflitos além da sentença e o Estado deve propiciar aos jurisdicionados todos esses mecanismos, inclusive os consensuais (conciliação e mediação), solução adotada no Brasil a partir de novembro de 2010, quando foi editada pelo CNJ a Resolução nº 125.

O novo Código de Processo Civil, que passou a vigorar em 18 de março de 2016, instituiu a audiência de conciliação ou de mediação como o primeiro ato do processo comum, mas alguns juízes, sob as mais variadas alegações (inexistência do Cejusc, falta de conciliadores e mediadores, retardamento da prestação jurisdicional e outras mais), não vêm dando cumprimento a essa importante inovação.

E a recente constatação do CNJ no programa “Justiça em Números” é no sentido de que, apesar da inovação trazida pelo novo CPC, o índice de soluções amigáveis não registrou o incremento esperado.

Mas, com os julgados dos Tribunais de Justiça e das Corte Superiores prestigiando a solução adotada pelo novo CPC, e ainda mais agora com a criação do Cejusc em quantidade cada vez maior, em breve certamente surgirá uma nova mentalidade, mais aberta e mais receptiva às soluções amigáveis.

Mas, o só acolhimento e efetivo esforço no sentido da implementação do acesso à justiça na concepção atualizada de acesso à ordem jurídica justa, com o oferecimento aos jurisdicionados de todos os mecanismos adequados à solução das controvérsias, como a conciliação e a mediação, e não apenas o mecanismo tradicional da solução adjudicada por meio de sentença, é um avanço extraordinário.

Com a facilitação do acesso à justiça haverá, certamente, aumento da judicialização dos conflitos. Mas o congestionamento da Justiça decorre muito mais de outros fatores, de natureza negativa, tais como:

a) falta de adoção, em vários segmentos da sociedade, não somente da Justiça, como de outras instituições públicas e privadas, de tratamento adequado dos conflitos de interesses, para se evitar a judicialização excessiva, e por vezes até desnecessária, dos conflitos de interesses;

b) inexistência da atuação mais efetiva das agências governamentais, fiscalizando e solucionando grande parte dos conflitos gerados pelas empresas que atuam especialmente na área de serviços públicos concedidos, pois grande parte dos conflitos judicializados é gerada por elas, principalmente pela falta de investimentos para universalizar e aperfeiçoar os serviços concedidos;

c) falta de busca de soluções mais eficientes, na órbita administrativa, para as reclamações dos administrados e também para a cobrança de obrigações tributárias, sabido que grande carga da Justiça hoje diz respeito às demandas em que num dos polos está um órgão público.

A facilitação do acesso à justiça é certamente geradora do aumento de processos, mas esse incremento é de natureza positiva.

O aumento de processos que a abertura do acesso à justiça pode criar é a contrapartida necessária desse grande benefício do pleno exercício da cidadania, que é constitucionalmente assegurado a todos.

O Judiciário deve estar permanentemente pesquisando, debatendo e buscando as soluções apropriadas para o grande congestionamento de processos que vem enfrentado desde há muito tempo. E dentre essas soluções, desponta em termos de efetividade, o incentivo à prevenção e solução extrajudicial de conflitos de interesses, em especial com a utilização dos mecanismos consensuais, como a conciliação e a mediação.

Essas são razões pelas quais em meu entender, dentre outras excelentes soluções que têm sido adotadas, a grande transformação ocorrida no Judiciário brasileiro nos últimos anos, que espero seja completada e aperfeiçoada em 2018 e nos anos subsequentes, é a atualização do conceito de “acesso à justiça” para “acesso à ordem jurídica justa”.