As expectativas dos esquecidos
O último artigo da série “O Brasil em 2018” é assinado pelo procurador da República Fernando Merloto Soave, que atua na defesa dos direitos dos povos indígenas e populações tradicionais do Amazonas.
Seu balanço sobre 2017 destaca, entre muitos “tristes episódios”, casos de reintegrações de posse coletivas cumpridas de madrugada, sem os trâmites legais e com derrubada de casas; tortura e violência praticadas por policiais contra indígenas, além de chacina contra povos indígenas isolados.
No ano passado, diz, “houve gradual desestruturação e extinção da FUNAI, redução de seus recursos, de frentes de proteção de povos isolados, fomentando novas ofensivas por setores do agronegócio, mineração, entre outros que visam trazer o famoso ‘desenvolvimento’, só resta saber pra quem”…
“Em diversos municípios, não havia presença de juiz, promotor, defensor público e, às vezes, nem mesmo delegado de polícia”, diz Soave. São precárias as estruturas em fóruns.
“Um lampejo de esperança” surgiu no final do ano passado, com o anúncio, pelo Tribunal de Justiça do Estado, da posse de juízes para todas as comarcas do interior.
O Amazonas é dono de um território gigantesco, com terras indígenas e extensa área de fronteira, afetado pelo desmatamento crescente e pelo tráfico internacional de drogas, de armas e de animais. “Tudo a ensejar a competência da Justiça Federal e a atuação do Ministério Público Federal”, afirma.
Mas o Estado conta com apenas duas subseções judiciárias federais e unidades do MPF no interior (Tefé e Tabatinga).
“Ainda assim, o Ministério Público Federal e o Conselho Nacional de Justiça apontam para a redução destas unidades no interior e de outras consideradas de difícil provimento, ou de ‘baixa movimentação'”, lamenta o procurador.
Segundo ele, “a esperança dos esquecidos em 2018 é que o MPF e o Poder Judiciário possam repensar este fechamento de Varas em fronteiras e com questões federais complexas”.
Fernando Merloto Soave é Procurador da República no MPF do Amazonas — 5º Ofício – 6ªCCR – povos indígenas, populações tradicionais e minorias.
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O ano de 2017 foi intenso em muitos sentidos.
Com certeza precisaremos de educação política em 2018 para minimizar os impactos nefastos da corrupção generalizada no Brasil, e isto já ficou mesmo claro pela atuação necessária dos integrantes da Operação Lava Jato fora dos autos, pela sociedade civil, em campanhas por mudanças legislativas, por voto consciente etc.
É nítido que somente operações criminais não resolverão problemas estruturais históricos, bem como tais problemas não serão resolvidos apenas pelo Poder Judiciário.
Contudo, escolho aqui fazer um balanço um pouco diferente. Refiro-me ao olhar dos esquecidos, sua história não contada.
Atuando há quase quatro anos na defesa dos direitos dos povos indígenas e populações tradicionais do Amazonas, pelo Ministério Público Federal, creio ser possível tecer um pequeno olhar neste sentido.
Passando pelo interior do estado do Amazonas em 2017 (e cito estas experiências pois acredito que elas devam se repetir em outros locais esquecidos do Brasil), pude constatar tristes episódios:
a) reintegrações de posse coletivas contra agricultores rurais em Boca do Acre/AM, com derrubada de casas, sem qualquer observância dos trâmites legais, cumpridas com violência, de madrugada, sem sua oitiva prévia;
b) fatos semelhantes nos arredores de Manaus/AM;
c) tortura e violência praticadas por policiais contra indígenas na cadeia em São Gabriel da Cachoeira/AM (cidade com mais de 80% da população indígena);
d) ausência de aulas na educação escolar indígena em todo o ano de 2017 em Eirunepé/AM; aulas iniciadas apenas em agosto aos ribeirinhos e indígenas, falta de vagas no Ensino Médio da cidade de Pauini/AM; ausência de materiais e merenda escolares em quase todo o estado; falta de mais de 200 escolas nas aldeias do alto rio Negro;
e) chacina contra povos indígenas isolados na região do Vale do Javari por garimpeiros (Tabatinga/AM e região);
f) extrema precariedade na saúde (casos simples são transferidos para a capital Manaus, há dias de barco, semanas ou meses de tratamento e, para alguns sequer isto, impossibilitados de voltar para sua terra natal em função da “morte natural” ocorrida neste meio tempo, como se a omissão e o descaso pudessem ser chamados de “natural”;
g) gradual desestruturação e extinção da FUNAI, redução de seus recursos, de frentes de proteção de povos isolados, fomentando novas ofensivas por setores do agronegócio, mineração, entre outros que visam trazer o famoso “desenvolvimento”, só resta saber pra quem.
Apesar destas tristes experiências, da verificação ainda maior do descaso com a coisa pública (res publica) por alguns dos gestores nestes locais só acessíveis por barco ou avião, ainda restaria a Justiça.
Este 3º Poder, fiscal da lei e garantidor dos pesos e contrapesos do sistema democrático atual, que poderia transformar a realidade de omissão, incapacidade de gestão ou mesmo corrupção no Poder Público, muito frequentes em diversos destes locais.
Aí a tristeza maior para pensar em 2018 nesta retrospectiva dos esquecidos.
Em diversos municípios visitados, não havia presença de juiz, promotor, defensor público e, às vezes, nem mesmo delegado de polícia.
Estruturas precárias em fóruns ou unidades completavam esta equação da impunidade. Homicídios, torturas, pedofilia sem qualquer investigação, ou quando investigados, tendentes à prescrição ou à impunidade.
No fim de 2017, no âmbito do Tribunal de Justiça do Amazonas, um lampejo de esperança: a posse de juízes para todas as comarcas do interior amazonense foi anunciada.
Pelo Ministério Público do Amazonas, ainda não houve semelhante informação, comarcas sem promotores ainda devem ficar bom tempo vazias.
Quanto à Defensoria e Polícias, também sem novidades.
Pelo MPF e pela Justiça Federal, o cenário não parece animador.
Dono de um território gigantesco, o Amazonas com centenas de territórios tradicionais, terras indígenas, unidades de conservação, extensa área de fronteira, coração da floresta amazônica, desmatamento crescente, toneladas de apreensões de drogas oriundas de tráfico internacional proveniente da Colômbia e Peru, tráfico internacional de armas, de animais, biopirataria, entre outros, todos a ensejar a competência da Justiça Federal e a atuação do MPF.
Se o natural seria esperar o fortalecimento destes órgãos na região, o caminho apontado pela Procuradoria-Geral da República e pelo Conselho Nacional de Justiça parece estar na contramão.
O estado do Amazonas conta com apenas duas subseções judiciárias federais e unidades do MPF no interior, em Tefé e Tabatinga.
Esta última, localizada em tríplice fronteira com a Colômbia e Peru, com índices crescentes de criminalidade transnacional e a maior área de povos indígenas em isolamento voluntário do mundo.
Ainda assim, MPF e Judiciário (CNJ) apontam para a redução ou fechamento destas unidades do interior, e de outras consideradas de difícil provimento, ou de “baixa movimentação”.
Tal postura parece conflitar diretamente contra o princípio da vedação do retrocesso social, que proíbe que conquistas sociais sejam perdidas.
Tome-se como exemplo o recente concurso de remoção aberto aos procuradores do MPF no fim de 2017. Com a abertura sem ingresso de novos procuradores, o caminho natural seria desfalcar os locais menos procurados, ou seja, os locais já citados, com os menores IDHs do Brasil.
Após manifesto de movimento social, lideranças indígenas e outros, no Amazonas, houve o anúncio pela PGR de que não seria desfalcado o Estado, contudo, a bomba sobrou para o vizinho: Rondônia, hoje, uma das principais entradas do arco do desmatamento na floresta amazônica, com intensos conflitos agrários, ficou com um déficit de seis procuradores da República, praticamente metade de sua força de trabalho em razão da realização deste concurso de remoção.
Espera-se que o Estado das controvertidas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio não seja esquecido também pelo MPF em 2018.
Não bastasse esta notícia, no último dia antes do recesso forense, nova bomba veio, desta vez pelo Corregedor do CNJ: em âmbito de Pedido de Providências cujo requerente é o próprio CNJ, o Corregedor proferiu decisão que, em resumo, encaminha para fechamento varas denominadas como de “baixa demanda processual”, entre elas Tefé, Tabatinga e mais seis, no norte do país e proximidades, coincidentemente, em áreas com os piores IDHs, com omissões gritantes do Poder Público, índices altíssimos de corrupção, entre outros fatores que acabam se tornando a famosa “cifra negra”, ou seja, demanda reprimida que sequer é contabilizada e, assim, não entra no ranking das “demandas processuais”.
A questão que resta é: diante de um cenário de descaso generalizado do Poder Público, a saída seria o fechamento de Varas judiciais e unidades do MPF nestes locais? Ou pelo contrário, seu fortalecimento?
Em 2018, a esperança dos esquecidos, além de todas as expectativas comuns em relação às eleições, ao combate à corrupção, à efetiva prestação de educação e saúde de qualidade, é que o Ministério Público brasileiro e o Poder Judiciário tendam a favor da última indagação, que a PGR possa fortalecer novamente Rondônia e a Amazônia brasileira, bem como a Corregedoria do CNJ possa repensar este fechamento de Varas em fronteiras e com questões federais complexas, sob pena de começarmos a não mais retroceder apenas no âmbito do Poder Executivo e de suas políticas, mas sim de todos os poderes democráticos.
Se é verdade que o sistema político nacional está corrompido até suas entranhas, não menos verdade é que parte desta corrupção se deve, no mínimo, à omissão dos fiscais da lei, do MP e do Judiciário, que precisam retomar as rédeas e sonhos democráticos inaugurados com a Constituição de 1988.