Justiça entre homens raivosos
O artigo a seguir é de autoria de Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito. O autor exerce a função de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
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Em 15 de janeiro, a presidente do Supremo Tribunal Federal conversava, em seu gabinete, com o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região sobre segurança para que três juízes julguem recurso, para condenar ou absolver um réu.
Todos diante de uma sentença, como em “Twelve Angry Men” (“Doze Homens e uma Sentença”), em que jurados se reúnem numa sala fechada para proferir um veredicto unânime de condenação ou absolvição, de jovem acusado de homicídio.
A culpa do réu parece tão evidente à quase totalidade deles, que pretendem votar depressa sua condenação. Mas um deles diverge e começa a fazer perguntas, abalando a convicção conveniente dos demais.
Faz calor e os jurados, nervosos, expõem seus preconceitos, percebendo que esses preconceitos os levaram a interpretar a cena do crime, como reconstruída por testemunhas, também influenciadas por preconceitos. No final, absolvem o réu.
A palavra “anger” ou ira (mênis, em grego), remete à disposição de retaliar, derivada do ressentimento. Nos jurados, está vinculada a forças irresistíveis da natureza – o clima quente e úmido do dia da sessão, as paixões pessoais de cada um.
Também pode-se tomar por cólera (khólos), impulso da vingança, punição para reparação emocional por um ultraje, móvel das Fúrias (Erínias), personificação da vingança.
Nem ira nem cólera remetem a justiça. Mênis é sobre-humana, atributo de deuses, impulsiona os humanos pelas forças da natureza. Nas ações da ira, o humano se presume divino, em relação ao outro.
Como diria Sêneca, o homem é coisa sagrada para o homem, ou uma espécie de Deus para o homem, em Hobbes. Já khólos é sub-humana, reciprocidade primitiva, fazer o mal como resposta ao mal.
As relações sociais tornam-se vingança permanente: o homem é lobo para o homem, dizia Plauto, na guerra de todos contra todos, para Hobbes. Por ira e cólera, o ser humano se põe como superior ou inferior, concede vida ou morte, protege ou devora, submete ou pune, supera ou vinga.
Na história dos doze jurados, porém, aparece uma voz discordante, que duvida e indaga, argumenta, antes de julgar. Essa voz dá vida a uma nova paixão, “paixão de contenção”: a justiça humana, que inaugura uma nova relação entre os humanos.
O homem, ao se ver humano em relação ao homem, respeita-o em sua condição natural-cultural, e pode julgar os atos de que é acusado.
Quem vai ser julgado pelo TRF-4 é uma das figuras mais importantes da história recente brasileira, cujas ações políticas levaram a uma transformação de nossa realidade e dos debates em torno dela.
Tal papel relevante não é desmerecido pelas acusações que se difundem numa parcela da sociedade (uma pequena parte delas aparece no processo que será julgado).
Dos juízes que referi, dois já manifestaram seu veredicto de condenação – um deles pela imprensa. Outros três participarão do segundo ato do julgamento, que não encerra a peça, pois a aguardam as performances nos Tribunais de Brasília.
Nem mesmo o julgamento final do judiciário encerrará a questão.
Na democracia, o povo ainda poderá discutir a correção do julgamento, colocando o veredicto na berlinda. Aquém e além da palavra do poder judicial está o poder político de julgar. E, nesse sentido, o julgamento, em seu primeiro ato, oferece uma pista, mesmo que aponte a conclusão diversa.
A república é o espaço público da participação popular – até aqui, ignorada, temida ou reprimida – e impõe homens reunidos não em sala secreta, no calor das paixões tropicais, mas em recinto aberto, argumentando diante de manifestações.
Não se deve tratar, pois, de segurança, mas de fazer fluir a voz da justiça, entre homens raivosos.