O Supremo na berlinda

Frederico Vasconcelos

O Supremo Tribunal Federal começou o ano exposto pelas análises sobre o controvertido desempenho em 2017 e pelas dúvidas sobre sua capacidade de conciliar os conflitos –internos e externos– agravados pelo calendário eleitoral de 2018.

Uma releitura da série “O Brasil em 2018“, publicada neste Blog na virada do ano, mostra o STF alvo das críticas de cerca de um terço dos 45 articulistas. Ressalte-se que eles escolheram livremente o tema de suas análises.

Os diagnósticos mais duros coincidem em alguns aspectos com a avaliação do professor Conrado Hübner Mendes, publicado na Folha neste domingo (28), sobre o “desgoverno procedimental” dos membros da mais alta Corte e o desgaste da imagem do STF.

Eis alguns trechos selecionados.

“Quem poderia imaginar que o Supremo Tribunal Federal conseguiria fechar o ano como o campeão inconteste de rejeição, repulsa, desprestígio e desmoralização perante o povo brasileiro?! É um feito notável em meio a seus concorrentes no sinistro campeonato de ilegitimidade institucional que trava com o poder legislativo e o executivo”, afirmou Modesto Carvalhosa.

Segundo o advogado, “esses ministros, que perderam inteiramente a compostura moral, funcional e judicante, são responsáveis por esse descalabro institucional em que está mergulhado o país, dominado pela corrupção, de alto a baixo, com suas consequências óbvias de miséria socio-econômica e da violência com que ferem a maioria absoluta do povo brasileiro.”

“A Suprema Corte não pacifica conflitos, ao contrário, potencializa aqueles que caem no seu colo. Cada ministro atua como se fosse um tribunal, contrariando entendimentos consolidados”, diz o juiz Renato Soares de Melo Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O magistrado afirma que “o regime de vistas é um acinte, dadas as razões políticas do seu uso”. “Os bate-bocas em plenário –tendo sempre como um de seus protagonistas o mesmo ministro– são um ultraje e deslegitimam a já infantilizada Corte”.

“A proximidade de certos julgadores com alguns jurisdicionados é um escárnio. A falta de autoridade e a insegurança de sua atual presidente a fragilizariam para comandar qualquer sessão de turma recursal em juizados especiais”, diz Melo Filho.

Os advogados Luiz Fernando Pacheco e Fernando Hideo Lacerda lembram o discurso da ministra Cármen Lúcia durante o encerramento do primeiro semestre do ano judiciário, pronunciamento que consideram “emblemático”.

“Ao afirmar que ‘o clamor por justiça que hoje se ouve em todos os cantos do país não será ignorado em qualquer decisão desta Casa’, a presidente do Supremo Tribunal Federal retrata à perfeição o desvirtuamento autoritário das práticas do sistema de justiça brasileiro”.

“Num espetáculo sombrio, trocamos as normas constitucionais pelas vísceras comunitárias manipuladas pelo discurso do ódio disseminado na arena pública”, escreveram Pacheco e Lacerda.

“Estamos sob judiciocracia, hipertrofia da justiça, situação que faz ela sujeitar-se aos juízos populares, em arremedo democrático tentando suprir ausência de voto na investidura de sua autoridade”, diz o procurador da República Celso Três.

O advogado Luiz Flávio Gomes entende que, “quando a Justiça resulta seletiva (voluntária ou involuntariamente), são muito mais profundas as repercussões eleitorais das suas sentenças”.

“Foi chocante o tratamento extraordinariamente benevolente que foi dado (pelo STF) ao Aécio Neves, que retornou à cadeira de senador mesmo depois daquela gravação pedindo R$ 2 milhões de propinas. Isso é intolerável nos dias atuais”, diz Gomes.

O mesmo episódio foi criticado pelo promotor de Justiça Roberto Livianu: “Aécio Neves, após ser surpreendido em ligações telefônicas comprometedoras, evidenciando estar envolvido em atos de corrupção, obteve vitória no STF, que decidiu ser do Congresso a última palavra no tema afastamento de parlamentar no exercício do cargo, precedente que foi na sequência invocado absurdamente por várias Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais”.

Luiz Flávio Gomes aguarda, em 2018, “a agilização do STF, que durante quatro anos não concluiu nenhum processo da Operação Lava Jato”,  assim como “o combate efetivo a todos os que a combatem ferrenhamente (como Gilmar Mendes)”.

“Nenhuma autoridade com prerrogativa de foro foi julgada até aqui”, concorda o procurador regional da República Vladimir Aras. “Caberá ao ministro Edson Fachin a dura tarefa de conduzir o caso Lava Jato aos primeiros julgamentos no foro especial, perante a Suprema Corte. Até agora só houve decisões de mérito em primeira instância em Curitiba e no Rio de Janeiro”.

“Em 2018, continuaremos a ver discussões acaloradas sobre a legitimidade para formalizar acordos de colaboração premiada, sobre seu objeto e os limites dos benefícios previstos em tais ajustes, especialmente no STF, onde, pelo que se viu na PET 7265/DF, o ministro Ricardo Lewandowski pretende imprimir uma reviravolta na posição da Corte, de modo a restringir o poder negocial das partes, o que pode aniquilar um instituto na luta contra organizações criminosas e outros crimes graves”.

O procurador está preocupado com a possibilidade ou não de prisões após o duplo grau de jurisdição, tema que voltará a ser discutido pelo STF.

“Até 2009, a Corte tinha entendimento favorável à execução penal após o encerramento da segunda instância, quando mudou de ideia (HC 84078/MG). Em 2016, mudou novamente de entendimento (HC 126.292/SP). Agora, os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes parecem capitanear outra reviravolta, de modo que a execução penal só possa ocorrer após o esgotamento dos recursos no STJ”, diz Aras.

Segundo a procuradora regional da República Ana Lúcia Amaral, “embora tenha o Supremo Tribunal Federal, por maioria apertada, acenado com a possibilidade do cumprimento da pena, quando confirmada a sentença por órgão de segundo grau, já foram mandados sinais em sentido contrário, pelos de sempre. E assim vai o país nesse movimento pendular da História: um passo a frente e muitos atrás”.

Ana Lúcia Amaral diz que “a organização de manifestações para tumultuar o dia do julgamento, pelo TRF-4, do recurso do ex-presidente Lula contra a sentença condenatória proferida pelo juiz Sergio Moro já é evidência da desmoralização do Poder Judiciário, conduzido pelo STF, ou por boa parte de seus integrantes”.

“Enfim, o ‘Jardim do Éden’ abriu a porta do Inferno para que em 2018 nos tornemos uma nova Venezuela”, prevê.

“O STF deixou de existir como um órgão de cúpula do Judiciário e de porta voz da Constituição, para se tornar um órgão de porta vozes em disputa de teses, quiçá opiniões, sem a construção de um consenso que permitisse a evolução consistente da Constituição, que nascera com o objetivo de restauração da legitimidade”, diz o desembargador Alfredo Attié, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O Supremo “parece ter agido tão somente como força de amortecimento das tensões políticas – entre as quais começaram timidamente a despontar tentativas de recuperação da legitimidade e de renovação da esfera política – e de contenção de movimentos por efetivas reformas”.

“Nada mudou na tradicional política penal brasileira: políticos fora do poder são passíveis de persecução criminal. Políticos no poder, excepcionalmente”.

“Há um protecionismo aos atos dos governantes, que mais se assemelha aos parâmetros da monarquia e se distancia das exigências de ‘responsability’ e ‘accountability’ típicas dos regimes republicanos”, diz Attié.

O juiz federal Jorge Costa diz que “não podemos ter dois sistemas de justiça, um voltado à criminalidade de bagatela, outro para os afortunados que, valendo dos legítimos instrumentos previstos nos ordenamentos legais, conseguem êxito em postergar o cumprimento da lei”.

Segundo o magistrado, o Supremo “terá missão fundamental na equalização desse confronto, incumbindo-lhe, como guardião maior da constituição e do estado democrático, ditar, com exatidão, a verdadeira interpretação das regras e procedimentos hoje utilizados pelas demais instâncias do Poder no exercício da jurisdição criminal voltada ao julgamento dessa criminalidade que tanto ofende e prejudica a nação”.

“No Supremo, é hora de a República ser recuperada, e se todos são iguais perante a lei, que se limite o foro privilegiado, que não se justifica, atravanca e desmoraliza nossa corte constitucional”, diz José Robalinho Cavalcanti, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República.

“Que se mantenha também a jurispudência que garante a execução da pena a partir da condenação da segunda instância, pois um recuo aí seria o mais terrível e injustificável retrocesso na luta contra a impunidade”, afirma.

“A Justiça corre o risco de se dividir em partidos, a vontade política ameaça substituir a necessária observância dos limites colocados por textos legais aprovados nos processos legislativos previstos constitucionalmente, diz o advogado Fernando Lottenberg.

Outro risco é os tribunais superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal, avocarem para si a solução sistemática de diferenças políticas, algo que caberia aos políticos fazer. É também verdade, porém, que na maior parte dos casos são os próprios políticos que acionam as cortes, quando não aceitam ter sido derrotados no processo legislativo”, afirma.

“Desse fenômeno decorre uma patologia secundária, mas nem por isso menos perigosa: as várias instâncias da Justiça vão sendo transformadas em poder constituinte derivado, com colegiados, juízes e ministros, estes individualmente, a definir o que deveria ser introduzido na Carta para torná-la melhor. São evidentes as consequências perniciosas dessa tendência para a segurança jurídica”, diz Lottenberg.

O advogado Cesar Asfor Rocha entende que “o Judiciário continuará tendo um protagonismo inédito, gerando incerteza o fato de que, mesmo sem alteração de regra legal ou constitucional, entendimentos jurisprudenciais antes consolidados sofrerem bruscas alterações, afetando todos os ângulos do direito, com maior incidência no direito sancionatório (penal, administrativo e eleitoral)”.

“No STF, entra um novo presidente em setembro, longamente aguardado, maxime agora, ante uma gestão que não tem sido do agrado das carreiras jurídicas e, possivelmente, de muita gente”, afirmam os juízes Bruno Machado Miano e José Tadeu Picolo Zanoni, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

“Resta a enorme dúvida se o novo presidente será suficiente para, ao menos, fazer frente a tantos querendo diminuir sensivelmente poderes do Judiciário e direitos da Magistratura”, concluem.