A intervenção federal e a Constituição
Sob o título “A intervenção federal na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro“, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
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I – O FATO
Atendendo a um apelo do governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, que admitiu não ter mais controle da situação, o presidente Michel Temer decidiu decretar a intervenção federal na segurança pública do estado do Rio. O decreto, que o presidente assina hoje, dá poderes totais para o general Braga Neto, chefe do Comando Militar do Leste, sobre todas as forças de segurança do estado, incluindo as polícias militar e civil, e o autoriza a tomar as medidas que achar necessárias para conter a ação do crime organizado no Rio, consoante noticiou o site Extra.
Pelo artigo 60 da Constituição, enquanto o decreto de intervenção estiver em vigor, o Congresso Nacional não pode aprovar qualquer mudança na Constituição, o que significa a suspensão da articulação para votação da reforma da Previdência. O presidente do Congresso, Eunício Oliveira, deverá convocar uma sessão do Congresso 24 horas após a publicação do decreto para que ele seja votado.
O instituto da intervenção federal tem por objetivo proteger a estrutura federativa contra os abusos ocorridos nas ordenações jurídicas parciais.
Visa à unidade e à preservação da soberania do Estado.
A decretação da intervenção federal dependerá(artigo 36 da Constituição Federal), no caso do artigo 34, IV, da CF, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coato ou impedido.
II – O INSTITUTO DA INTERVENÇÃO FEDERAL
Decerto fatos de gravidade indisfarçável justificam essa medida extrema.
Como bem explicitou Uadi Lammêgo Bulos (Constituição federal anotada, 6ª edição, pág. 618) esse instituto funciona como uma “espécie de camisa de força”, que suprime por certo lapso de tempo o exercício da Federação contra aquelas situações críticas que colocam em risco as finanças estaduais, bem como a estabilidade da ordem constitucional como um todo.
A Constituição previu o instituto da intervenção federal no intuito de evitar deturpações às balizas constitucionais da autonomia das pessoas políticas de direito público interno. Tal medida acaba por preservar o primado da higidez constitucional.
A intervenção é o antídoto para combater a ilegalidade e a inexistência da paz pública, na lição de Ricardo Lewandowsky (Pressupostos materiais e formais da intervenção federal no Brasil, 1994) e ainda Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1 de 1969, 1970).
Mas a intervenção federal é medida excepcional, esporádica, de cunho acentuadamente político, como ensinou Rui Barbosa (O artigo 6º da Constituição e a intervenção de 1920 na Bahia, 1973).
Sua origem data da aprovação da Lei Hamilton de 1791 pelo Congresso dos Estados Unidos.
O artigo 34, III, da Constituição Federal prevê a intervenção federal para “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”.
Lembre-se que a Constituição de 1988 tutelou a paz e tranquilidade no meio social. Estão sujeitas a ato interventivo, ações comprometedoras da legalidade, em que os cidadãos deixem de respeitar e acatar, sem constrangimento, o poder exercido pelas autoridades competentes.
Como dito, essa intervenção dependerá para efetivar-se de decreto do presidente da República, o qual especificará a sua amplitude, prazo e condições de execução, já nomeando, se couber, o interventor (artigo 36, § 1º).
O decreto de intervenção será submetido pelo presidente da República à apreciação do Congresso Nacional no prazo de vinte e quatro horas, que será convocado de forma extraordinária, no mesmo prazo, para conhecer do ato interventivo.
Na lição de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 420), é importante dizer que o Congresso Nacional não se limitará a tomar ciência do ato de intervenção, pois o decreto interventivo lhe será submetido para apreciação, o que envolve um julgamento de aprovação e de rejeição, como, se lê do artigo 49, IV, que destina competência exclusiva para tal.
Se suspender a intervenção, esta passará a ser ato inconstitucional, e deverá ser cessada de forma imediata, pois, se mantida, constituirá atentado contra os poderes constitucionais do Estado, fato que caracteriza crime de responsabilidade do presidente da República, previsto no artigo 85, II, da Constituição Federal.
III – O CONTROLE JURISDICIONAL
Não há controle jurisdicional sobre o ato de intervenção nem sobre esta, porque se trata de ato de natureza insuscetível de controle jurisdicional, salvo manifesta infringência às normas constitucionais e a seus princípios.
Mas haverá hipótese de apreciação pelo Judiciário caso a intervenção venha a ser suspensa pelo Congresso Nacional e ela persista, pois o ato, se assim for, perderá legitimidade e se tornará inconstitucional.
IV – A RESPONSABILIDADE CIVIL DO INTERVENTOR
A figura do interventor não fora prevista pela Constituição de 1891. Rui Barbosa se insurgira contra ela no caso da intervenção em Mato Grosso em 1906, admitindo -a e de forma incoerente pediu intervenção no Estado de Amazonas.
A figura do interventor e sua nomeação pelos poderes da União encontram justificação jurídica na figura dos chamados poderes implícitos, segundo o qual a Constituição se confere um poder expresso para certo fim, há de implicitamente oferecer os meios para atingi-lo, caso não o faça explicitamente. Mas as demais Constituições instituíram, de forma expressa, esse instituto.
O interventor é figura constitucional e autoridade federal, cujas atribuições dependem do ato interventivo e das instruções que receber da autoridade interventora.
Suas funções, limitadas ao ato de intervenção são federais. Mas também pratica atos de governo estadual, dando continuidade à administração do Estado nos termos da Constituição e das leis deste.
Quando, na qualidade de interventor, executa atos e profere decisões que prejudiquem a terceiros, a responsabilidade civil pelos danos causados(artigo 37, § 6º) é da União Federal, sendo competente a Justiça Comum Federal para instruir e julgar eventuais ações.
Como ensinou Eduardo Espínola (Constituição dos Estados Unidos do Brasil, pág. 159), no exercício normal e regular da Administração estadual, tal responsabilidade é de imputar-se ao Estado.
Com o devido respeito, entendo que, no atual sistema constitucional, todos os atos do interventor que afrontem as normas e princípios são de competência da Justiça Federal de primeira instância, a teor do artigo 109 da Constituição Federal.
V – EMENDAS CONSTITUCIONAIS E INTERVENÇÃO FEDERAL
Como ensinou Pinto Ferreira (Da Constituição, 1956, pág. 100 e 101), na linha de Meirelles Teixeira, em suas lições, a expressão reforma da Constituição abrange qualquer alteração do texto constitucional, como é o caso da emenda e da revisão. A emenda é a modificação de certos pontos, cuja estabilidade o legislador constituinte não considerou tão grande como outros mais valiosos.
A reforma da Previdência é tema de reforma constitucional, pontual, por emenda.
Com a decisão do presidente Michel Temer de decretar uma intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro, a reforma da Previdência, cuja apreciação em plenário estava prevista para começar na próxima terça-feira, não poderá ser votada pelo Congresso Nacional durante o período em que aplicação da citada intervenção.
Ora, como se lê do artigo 60, § 1º, a Constituição não poderá ser emendada na vigência da intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.
O preceito traz limitações circunstanciais, que visam a impedir qualquer alteração formal em instantes de conturbação e instabilidade institucionais.
A Constituição consagra tal limite, pois em tais casos faltam dois elementos primordiais para se empreender qualquer reforma na ordem constituída: a serenidade e a ponderação. Tais requisitos essenciais para tal situação extrema procuram assegurar que as deliberações sejam tomadas em ambiente de paz, tranquilidade, evitando possíveis imposições da força ou a possível prevalência de interesses unilaterais.