Tribunais devem aplicar leis estaduais inconstitucionais?

Frederico Vasconcelos

Gerou controvérsia o julgamento, na última sessão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de uma proposta contra o pagamento de servidores do Tribunal de Justiça da Bahia com recursos de fundos privados.

Nesta terça-feira (20), o colegiado reabriu a discussão sobre a possibilidade de o CNJ afastar a aplicação de uma lei estadual considerada inconstitucional.

Essa questão era considerada pacífica, a partir de precedente do Supremo Tribunal Federal, em julgamento realizado em 2016 que teve como relatora a presidente do CNJ, ministra Cármen Lúcia. (*)

As dúvidas surgiram diante de manifestações da presidente do órgão.

Em sua atuação, o CNJ já se deparou com questões regradas por leis estaduais –a maior parte delas de iniciativa dos próprios tribunais– e afastou a aplicação de norma que conflite com a Constituição Federal.

Exemplos dessas matérias: nomeação de servidores para cargos de provimento efetivo sem concurso público; emolumento judicial com destinação a entidade de classe com finalidade privada e uso de fundos privados para o pagamento de servidores.

Na última sessão, Cármen Lúcia afirmou que, sendo órgão administrativo, não cabe ao CNJ analisar a constitucionalidade de leis, atribuição exclusiva do Judiciário.

“O CNJ foi criado como órgão administrativo. Não é órgão judicial, não exerce jurisdição e não declara inconstitucionalidade de norma nenhuma. Qualquer coisa além disso é exorbitância das atribuições constitucionais do Conselho. Simples assim”, disse Cármen Lúcia.

Essa posição colide com a opinião de conselheiros e ex-conselheiros, segundo os quais esse entendimento impediria o CNJ de exercer seu papel relevante de controle administrativo.

Eis o que observa um ex-conselheiro: em hipótese alguma, em julgamento em um órgão de cúpula, como o CNJ, poder-se-ia desprestigiar uma regra constitucional para prestigiar uma lei inconstitucional.

Na última sessão, foi levado ao conhecimento do plenário um processo, proposto pela Associação Nacional de Defesa de Concurso para Cartório, contra o Tribunal de Justiça da Bahia.

Em razão de alteração legislativa de sua iniciativa, desde 2016 o TJ-BA paga seus servidores que atuam em cartórios de registro civil de pessoas naturais, ainda não privatizados, com verba oriunda de fundo de caráter privado.

Trata-se de fundo especial, de caráter privado, instituído pelo tribunal baiano para compensação financeira de serventias notariais que não obtenham arrecadação suficiente para o seu funcionamento, em razão da gratuidade na emissão de documentos como registro civil ou certidão de óbito, garantida pela Constituição Federal.

A relatora, conselheira Maria Iracema do Vale, entendeu que não cabe ao CNJ analisar esse tema, o que envolveria o controle de constitucionalidade. Ou seja, deixou de analisar o mérito por entender inviável o debate acerca da lei estadual.

Em extenso voto divergente, o conselheiro Valdetário Monteiro terminou por reconhecer, excepcionalmente, a possibilidade de afastar a aplicação da lei, determinando ao Tribunal de Justiça da Bahia que deixe de custear despesas públicas com verbas privadas.

O conselheiro anotou precedentes do próprio CNJ e do STF que, no seu entender, dariam ao Conselho a possibilidade de afastamento das leis inconstitucionais.

Como noticia o próprio CNJ, “um dos exemplos citados pelo conselheiro foi de uma decisão unânime do Supremo, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, em que a Corte teria considerado legítima a atuação do CNJ ao declarar a nulidade de mais de 100 nomeações irregulares de cargos de confiança, feitas pelo Tribunal de Justiça da Paraíba, sem a observância da exigência de concurso público”.

Em dezembro de 2016, ao julgar improcedente a PET 4656, no mérito, o STF, “por unanimidade e nos termos do voto da Relatora [ministra Cármen Lúcia], considerou válida a atuação do Conselho Nacional de Justiça e julgou improcedente o pedido da ação anulatória, declarando incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei 8.223/2007 da Paraíba”.

Para o conselheiro Valdetário Monteiro, “o STF demonstrou que o CNJ pode fazer controle de atos administrativos afastando aqueles que houverem sido fruto de leis cuja inconstitucionalidade seja evidente”.

Após o voto divergente, o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do conselheiro Arnaldo Hossepian.

No entanto, ainda segundo noticia o CNJ, a ministra Cármen Lúcia fez questão se pronunciar.

“Não sabia que o desentendimento sobre o que o STF decidiu fosse tão extenso e gravíssimo”, disse a ministra, em relação à referência feita por Valdetário.

De acordo com a ministra, em seu voto no STF não foi dito, em nenhum momento, que o CNJ possa cogitar, nesses treze anos de existência, o exercício do controle de constitucionalidade e que tenha o poder de aplicar ou não uma lei.

O precedente do STF indica o seguinte: “Insere-se entre as competências constitucionalmente atribuídas ao Conselho Nacional de Justiça a possibilidade de afastar, por inconstitucionalidade, a aplicação de lei aproveitada como base de ato administrativo objeto de controle, determinando aos órgãos submetidos a seu espaço de influência a observância desse entendimento, por ato expresso e formal tomado pela maioria absoluta dos membros do Conselho.”

Conclusão de um ex-conselheiro: abriu-se novamente espaço para que os tribunais promovam leis inconstitucionais, sempre em benefício próprio ou de seus servidores e membros, o que já se imaginava obstado pela decisão plenária do STF.

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(*) PET 4656