Identificação forçada nas favelas é ilegal
O artigo a seguir é de autoria de Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
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A Constituição Federal impede que o civilmente identificado sofra o constrangimento da identificação criminal (artigo 5o.)
A identificação civil é atestada pela Carteira de Identidade ou RG, pela carteira de trabalho, pela carteira profissional, pelo passaporte, carteira de identificação funcional, ou qualquer outro documento público que permita a identificação da pessoa (Lei 12037/2009).
Identificar, do ponto de vista do direito, é individualizar alguém, permitir que seja reconhecido, determinar a sua identidade.
Só a lei pode fornecer as hipóteses em que a identificação civil não valha e deva ser feita a identificação criminal (artigo 5o. da Constituição).
A Lei que define essas hipóteses é a 12037 de 2009.
No seu artigo 3o. ela diz que poderá ocorrer identificação criminal quando: o documento de identificação civil apresentar rasura ou tiver indício de falsificação; for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado; o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si; a identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa; constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações; o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais.
A lei diz “indiciado”, isto é, a pessoa indicada, pelo que se chama de indícios criminais (uma forma mais fraca de prova), como possível autora de um crime.
Pois bem.
A identificação forçada a que estão sendo submetidos os moradores de favelas do Rio de Janeiro é inconstitucional e ilegal.
Somente poderia ocorrer se as pessoas identificadas na forma de fotografia de rosto e do documento de identificação civil estivessem sendo acusadas de cometimento de crime e apontadas como possíveis autoras, e por autorização judicial.
Não consta que ser pobre e morador de favela ou de determinada região constitua crime.
Os agentes que implementam a intervenção federal devem explicar à sociedade o móvel de tal modo de atuar e o embasamento normativo de sua atuação.
Se as Forças Armadas entendem, na execução da determinação de intervenção na administração de segurança do Estado do Rio de Janeiro, que há falha no sistema nacional de identificação civil, devem relatar o fato ao Ministério da Justiça, para que providências sejam tomadas, não havendo como substituir o sistema de identificação civil pelo sistema empregado de fotografia do rosto e do documento de identificação civil.
Cabe, com a urgência necessária, aos profissionais de direito manifestar-se a propósito do que está ocorrendo, protestando para a preservação do Estado Democrático de Direito, e sugerindo medidas a serem tomadas para que se restabeleça, de fato, a lei e a ordem referidas na Constituição Federal, na Lei Complementar 97/1999, no Decreto 3897/2001, e se aperfeiçoem as instituições e as ações do Estado brasileiro, na forma dos direitos e garantias constitucionais e previstos nos Tratados Internacionais em vigor no Brasil. E assim faz a Academia Paulista de Direito, no acompanhamento que coordena, por meio do Comitê de Cidadania que instalou.