Auxílio-moradia e ‘pós-verdade’
“Invocar dispositivos de leis descoladas dos tempos atuais, após os ganhos institucionais decorrentes da Constituição de 1988, e distorcer o significado de institutos jurídicos à sua conveniência, põe em risco a necessária confiança que a sociedade está a depositar nas instituições do sistema de Justiça”. [Ana Lúcia Amaral]
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Sob o título, “Auxílio-Moradia é auxílio-moradia?”, o artigo a seguir é de autoria de Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República aposentada. O texto aponta contradições e distorções envolvendo a concessão do benefício no Judiciário e no Ministério Público.
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Em tempos da “pós-verdade”, parece que cada um pode dizer o que é verdade a partir da sua versão desse mesmo fato. Ainda que a versão conflite com a contundência do fato. Tudo tomado como evolução, que também parece não ser evolução se utilizado o vocábulo “evolução” em seu real significado.
É fato que os campos do conhecimento humano vão se alargando, ao mesmo tempo que cada ciência vai se compartimentando em áreas mais específicas, por força dos aprofundamentos feitos no último século, com velocidade maior à medida que novas áreas do conhecimento vão incorporando os seus métodos aos já existentes.
Todavia, não se pode perder de vista que há realidades que permanecem com toda sua concretude, de sorte que sua natureza não pode ser desconsiderada.
No Direito, a evolução e/ou modificações parecem mais lentas, mas acontecem. Assim, institutos jurídicos desaparecem, porque a vida em sociedade sofreu mudanças de tal ordem que os tornam obsoletos, por não mais encontrar na sociedade situações às quais destinavam sua disciplina, enquanto outros vão tomando melhor configuração, adaptando-se a realidades anteriormente não verificadas e/ou conhecidas.
Lembro dos tempos do curso de Direito, há várias décadas, quando se estudava a natureza jurídica dos diferentes institutos jurídicos. Embora houvesse quem entendesse que só servia para ser indagado nas provas, o fato é que tinha sua utilidade na medida em que permitia a melhor compreensão da realidade para a qual se voltava, possibilitando o entendimento e disciplina mais adequada de novas situações, mas semelhantes.
Aprendi naquela época que, por força do estabelecimento de relações de trabalho formal, havia direito e obrigações aplicáveis ao trabalhador em geral, tanto na espera privada como na esfera pública.
Além da devida remuneração pelo trabalho, feito regularmente, dentro do regime de cada atividade — o salário –, o trabalhador da esfera privada ou pública poderia vir a receber também outras verbas, que não teriam a mesma regularidade, a constância no tempo, vez que decorrentes de certas circunstâncias fáticas que não se repetiriam, reiteradamente, dada a sua peculiaridade.
Assim, de tudo o que o trabalhador recebe por força da prestação cotidiana de sua força de trabalho, algumas verbas são consideradas integrantes de sua remuneração regular, e outras temporárias e/ou transitórias, são consideradas “indenizatórias”, na medida em que decorrentes de ônus que o empregado/trabalhador tem que suportar para que possa executar suas tarefas em circunstâncias excepcionais ou não permanentes.
Perenidade de verba transitória
Assistimos, no momento, intensa agitação nos meios dos servidores públicos do sistema de Justiça, mais especificamente juízes e membros do Ministério Público, em defesa da manutenção do recebimento do denominado “auxílio-moradia”, verba essa que, por sua natureza jurídica, deveria ser paga em situações específicas e transitórias, mas em tempos da tal “pós verdade” é reclamada de forma ampla, geral, irrestrita e perene, no entendimento daqueles mesmos profissionais do Sistema de Justiça.
Como já amplamente divulgado, foi anunciado, para o dia 22/03/18, o julgamento de ação originária, promovida perante o Supremo Tribunal Federal, na qual, em sede de liminar, foi concedido a todos os juízes federais o pagamento do denominado auxílio-moradia.
Para fundamentar tal decisão precária, como o é toda e qualquer decisão monocrática proferida por integrante de colegiado, – e sem qualquer previsão orçamentária — foi invocado o art. 65, inciso II da LOMAN, com redação dada pela Lei Complementar n.º 54/86, que prevê o pagamento de auxílio-moradia aos juízes em exercício em localidades onde não houver residência oficial.
Invocou-se também a Lei Orgânica do MPU, LC n.º75/93, mais especificamente o art. 227, inciso VIII, que restringe o pagamento do auxílio-moradia aos membros do MPU “lotados nas localidades cujas condições de moradia são consideradas particularmente difíceis e onerosas”.
Quanto à previsão da LOMAN, para justificar o pagamento do auxílio-moradia, seria de se indagar o que vem a ser “residência oficial”, quando e se existiram ou existem? Quem tem na família parentes que foram juízes em cidades do interior, sabe que alguns chegaram a residir, no tempo em que permaneceram na comarca, em imóveis muitas vezes cedidas por prefeitos, como modo de atrair para a sua cidade a instalação de uma vara da Justiça Estadual ou Federal. Isso nos tempos em que eram raras as Comarcas com mais de um juiz.
Dada a forma de estruturação e organização das carreiras jurídicas de Estado, é sabido que a comarca inicial de ingresso não era, e muitas vezes ainda não é no presente, o destino final do magistrado/promotor.
Por força de previsão constitucional, a garantia da inamovibilidade, os concursos de remoção e promoção demonstram que o local do exercício funcional não é imposto. E a experiência demonstra que magistrados e membros do Ministério Púbico acabam por escolher as localidades de sua conveniência, no mais das vezes onde têm suas raízes.
A expressão “localidades onde as condições de moradias são mais onerosas ou particularmente difíceis, assim considerada pela lei complementar do MPU, revela ser algo excepcional e não regra a concessão do auxílio-moradia.
Mas em sede de decisão liminar, o ministro Luiz Fux, como relator da ação originária a ser julgada pelo plenário do STF, transformou o que era exceção em regra para, por equiparação, estender aos juízes federais o “auxílio-moradia”.
Ocorre que o mesmo STF, por sua segunda turma, então integrada pelo saudoso ministro Teori Zavascki, ao analisar dispositivo da Lei Orgânica do MPU, LC n.º75/93, decidiu pela aplicação restrita aos precisos termos da norma, em julgado de setembro de 2015, no Mandado de Segurança (MS 25838), impetrado pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) contra decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que, em 2006, considerou ilegal a concessão de auxílio-moradia para membros do Ministério Público da União em caso de promoção com deslocamento para outra cidade, conforme previsão da Portaria 495/1995.
Em função da decisão do TCU, o Procurador-Geral da República, à época, editou a Portaria 8/2006 para explicitar que o auxílio-moradia previsto na Lei Complementar 75/1993 (artigo 227, inciso VIII) se restringia aos membros do MP da União lotados nas localidades cujas condições de moradia são consideradas particularmente difíceis e onerosas (como algumas cidades do norte do País e cidades fronteiriças), excluindo a concessão do auxílio quando o deslocamento decorria de promoção, como fixado na Portaria 495/1995 atacada por decisão do TCU.
PGR extrapola poder regulamentador
À época do julgado em comento, já vigorava a decisão liminar do ministro Fux que concedeu o auxílio-moradia a todos os magistrados federais. Por força dessa ordem liminar, vale lembrar que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio da Resolução 117/2014, estendeu o auxílio-moradia a todos os membros do MP, exceto aos que residiam em imóvel funcional.
Assim, no entender da entidade de classe, Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR, a impetração em julgamento pela 2ª Turma do STF estava esvaziada. Mas defendeu o direito de 41 membros que, à época, aceitaram promoções com deslocamentos na expectativa de receber o auxílio por quatro anos, e com a edição da Portaria 8/2006 deixaram de receber aquela vantagem.
O ministro Teori Zavascki, relator da matéria, considerou que o benefício previsto na Portaria 495/1995 foi concedido com base no artigo 227 (inciso VIII) da Lei Complementar 75/1993. Mas, ao editar essa portaria, o procurador-geral da República extrapolou seu poder regulamentador.
“Os atos administrativos normativos não podem ultrapassar os limites da lei que visam regulamentar, dispondo sobre situações não previstas na norma primária”, frisou o ministro, destacando que a LC 75/1993 cuidou de localidades cujas condições de moradia são consideradas particularmente difíceis e onerosas.
Ao PGR cabia definir quais seriam esses locais, mas não lhe permitia criar outras condições, segundo o relator no feito.
Ao negar o pedido da ANPR, o relator salientou que a decisão do TCU e a Portaria 8/2006 da PGR limitaram-se a adequar a Portaria 495/1995 aos limites da Lei Complementar 75/1993.
Em meio a tantas versões, ou “entendimentos”, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, instaurou procedimento para analisar o pagamento de auxílio-moradia em todos os Ministérios Públicos estaduais e Tribunais de Justiça do país, objetivando identificar abuso na concessão do benefício.
De acordo com o então chefe do MPU, aquele mesmo que se manifestou favoravelmente à concessão do auxílio-moradia na ação originária a ser levada a julgamento em 22 de março próximo, o auxílio só deve ser concedido para ressarcir quem tem gasto adicional por trabalhar em local distante de sua residência e assim regulamentou o benefício no Ministério Público Federal.
Retornando àquela ação originária, cujo julgamento é esperado para breve, e em que pese ter sido invocada a equiparação entre membros do MP e da magistratura, retirando, para tanto, seu fundamento do disposto no art, 227, inciso VIII da LC n.º75/93 (localidades cujas condições de moradia são consideradas particularmente difíceis e onerosas), os integrantes dos tribunais têm invocado o trecho da LOMAN que prevê pagamento do referido “auxílio” quando não houver “residência oficial”, como se houvesse fundamento para o Poder Judiciário oferecer a todos os magistrados residência, vale dizer, não pudessem os magistrados suprir essa despesa perene com seus subsídios, como todo e qualquer trabalhador tem que fazer.
Alegar que juízes também trabalham em casa, para tentar justificar a necessidade do auxílio-moradia, parece desconhecer a realidade de muitos profissionais que trabalham em suas casas graças à revolução digital.
Ameaça de greve, apesar de proibição
E nessa luta desconectada da gravíssima situação vivida pela maioria esmagadora da população, magistrados ameaçam, por meio de suas associações de classe, fazer greve, desprezando comando constitucional que lhes proíbe movimentos dessa natureza. Esquecem que seus integrantes exercem funções fundamentais e indispensáveis, vez que são funções permanentes.
Ousam em posar como vítimas de uma conspiração encetada pela classe política e parte da elite econômica, seriamente abaladas pela Operação Lava Jato e outras dela derivadas. Ainda que haja movimentos da classe política, via projetos de leis limitadoras da atuação das instituições do sistema de Justiça, principalmente a penal, o fato é que se não têm telhado de vidro não devem temer pedradas.
Invocar dispositivos de leis descoladas dos tempos atuais, após os ganhos institucionais decorrentes da Constituição de 1988, e distorcer o significado de institutos jurídicos à sua conveniência, põe em risco a necessária confiança que a sociedade está a depositar nas instituições do sistema de Justiça.
Não é só a corrupção, como tipo penal, que afeta a sociedade. Distorcer os termos legais para se auto conferir vantagens é retirar legitimidade fundamental à própria função jurisdicional. O sistema jurídico não pode ser usado de qualquer forma e para qualquer fim. Nem tudo que é legal é legítimo, pois sabemos que o Congresso Nacional de há muito não prima pela elaboração de leis que visem o bem comum da nação.
O Poder Legislativo e o Poder Executivo hoje sofrem o repúdio da sociedade. O Poder Judiciário parece que não se dá conta que não pode permanecer alheio à realidade nacional, escondendo-se atrás de teses inconsistentes, mas que protejam seus integrantes e seu interesses.
Greve de juiz e membro do Ministério Público só beneficia quem busca fugir da aplicação da lei. Por outro lado, o grande risco da greve é a grande maioria da sociedade nem sequer percebê-la…