Procuradora vê astúcia no debate sobre auxílio-moradia

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Auxílio-Moradia e Astúcia Processual“, o artigo a seguir é de autoria de Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República aposentada.

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Após três anos e meio da concessão de ordem liminar, na Ação Originária nº 1773, sob a relatoria do ministro Luis Fux, pela qual ficou autorizado, em caráter precário, o pagamento do denominado “auxílio-moradia” para todos os juízes federais, depois estendida a mesma decisão a todo e qualquer juiz, que acabou também por ser concedido a membros do Ministério Público, está pautado o julgamento da referida ação, pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, para o dia 22 de março próximo.

Pautado o processo, associações de magistrados e do Ministério Público organizam manifestações, cujas denominações vão sofrendo alterações conforme a reação da opinião pública, seja a expressa pelos órgãos de imprensa tradicional, seja nas denominadas redes sociais.

Assim já foi anunciada uma greve, depois uma paralisação e agora é anunciada “mobilização” anunciada para o dia 15/3/2018, na “esperança” de pressionar/sensibilizar/convencer todos os ministros do STF a respeito da constitucionalidade, da legalidade e da correção ética da pretensão.

Ocorre que foi pautado outro feito, mais antigo, como o mesmo objeto, qual seja, a concessão do auxílio-moradia para magistrados federais, mas, desta feita, promovida pela Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil). É a Ação Originária n.1.649, então distribuída ao ministro Joaquim Barbosa.

Cabe, aqui, trazer a decisão liminar nela proferida:

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DECISÃO: Trata-se de ação ordinária, com pedido de antecipação de tutela, ajuizada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e outras associações de magistrados federais de alcance regional contra a União.
As associações autoras pretendem reconhecimento do direito dos juízes federais ao auxílio-moradia previsto no inciso II do art. 65 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Loman (Lei complementar 35/1979) e condenação da União ao pagamento de todas as parcelas do referido adicional que deixaram de ser pagas no passado, desde que não alcançadas pelo prazo prescricional.
Para defender a necessidade de antecipação da tutela, as associações autoras dizem que o auxílio-moradia é parcela de natureza alimentar, de extrema relevância, ainda mais se considerada a impossibilidade de o juiz federal exercer qualquer outro tipo de atividade remunerada, salvo o magistério. Nesse sentido, argumentam que a ausência de pagamento causa dano irreparável aos juízes federais.
Por outro lado, aduzem que a medida pleiteada apresenta caráter reversível, uma vez que os valores eventualmente antecipados poderão ser restituídos mediante desconto em folha caso a ação venha a ser julgada improcedente. A ação foi ajuizada perante a justiça federal de 1º grau do Distrito Federal.
A competência deste Supremo Tribunal Federal para julgá-la foi reconhecida pela decisão de fls. 110- 113, proferida pela 7ª vara daquela seção judiciária. Decido. Esta Corte, em julgamento recente, declarou-se competente para julgar ação em que associação de juízes federais pleiteia o pagamento de ajuda de custo para despesas de transporte e mudança prevista no art. 65, I, da Loman a seus associados (AO 1.569-QO, rel. min. Marco Aurélio, Pleno, DJe 27.08.2010).
Não se deve ignorar, entretanto, que no passado já foi adotada conclusão oposta (AO 587, rel. min. Ellen Gracie, DJ 30.06.2006, por exemplo).
Muito embora se pudesse elaborar distinção embasada na diferença entre dois grupos de juízes federais representados nesta ação – os que possuem e os que não possuem residência própria na localidade em que exercem a judicatura -, conclusão que poria em xeque a existência de um interesse de toda a magistratura federal nesta demanda, entendo que o reconhecimento da competência deste Supremo é providência que atende ao propósito de oferecer resposta rápida e definitiva ao pleito, considerada a dimensão financeira do que se requer e, também, o risco de que a resposta jurisdicional a esta demanda acabe por contribuir para indesejada flexibilização do teto remuneratório fixado na Constituição.
Dessa forma, em juízo monocrático, sujeito à confirmação pelo Pleno, reconheço a competência desta Corte para julgar a presente ação.
Passo a analisar o pedido de concessão de tutela antecipada. Antecipo que não me parece que estejam presentes os requisitos necessários para a sua concessão.
Em primeiro lugar, a argumentação das autoras não conduz a um juízo positivo acerca da verossimilhança da alegação. O fato de Conselho Nacional de Justiça e Superior Tribunal de Justiça terem deferido a seus membros o pagamento da parcela não conduz, necessariamente, a uma conclusão acerca da legalidade desse pagamento.
Tais precedentes poderiam ser utilizados apenas se fosse o caso de se adotar no caso interpretação isonômica, método que não é permitido em situações que envolvem ordem para iniciar o pagamento de valores a servidores públicos.
A mera previsão na Loman também não me convence, neste juízo preliminar, uma vez que é fato notório que os magistrados federais são atualmente remunerados por meio de subsídio, forma de pagamento que por natureza indica o englobamento em valor único de parcelas anteriormente pagas em separado.
Não me parece, por outro lado, que tenha sido demonstrado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Não há evidências concretas de que se esteja diante de parcela alimentar.
Pelo contrário, tudo leva a crer que o auxílio-moradia não serve para complementar a remuneração do magistrado federal, mas sim para indenizá-lo por despesas que surgem da sua designação para o exercício em localidade distante, despesas que têm origem em uma circunstância fática transitória e que, exatamente por isso, devem desaparecer com a passagem do tempo, à medida em que o magistrado reúna as condições de obter moradia adequada à dignidade das suas funções e à segurança pessoal e familiar.
Assim, creio que o dano depende de demonstração concreta e temporalmente delimitada (transitória), sujeita às condições específicas de cada situação de remoção de magistrado federal para localidade em que não possua residência própria ou oficial, impossível, portanto, de caracterização liminar, ainda mais na forma genérica como foi deduzido.
Noto, ainda, que, se a parcela efetivamente nunca foi paga (é o que alegam as autoras), é remota a possibilidade de que ocorra dano irreparável na espera até uma definição a respeito do assunto. Considero duvidosa a afirmação de que a tutela pleiteada teria natureza reversível. Sabe-se que a cessação do pagamento de parcelas concedidas por ordem judicial é circunstância traumática que tende a gerar efeito multiplicador de demandas judiciais.
É prudente esperar a correta individualização das situações aptas a produzir o direito aqui pleiteado.
Registre-se, ademais, o impedimento contido na Lei nº 9.494, plenamente aplicável à espécie, uma vez que eventual concessão de tutela antecipada equivaleria a iniciar pagamento de parcela que, segundo as autoras, não vem sendo paga a seus associados.
Do exposto, indefiro o pedido de concessão de tutela antecipada.
Cite-se a União. Fixo-lhe o prazo de 60 (sessenta) dias para contestar.
Publique-se.
Brasília, 21 de setembro de 2010
Ministro JOAQUIM BARBOSA
Relator
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A ação promovida pela Ajufe foi levada ao Supremo Tribunal Federal por envolver interesse de toda a magistratura, donde dever ser reconhecida a sua Repercussão Geral.

Teve sustada a sua tramitação, pois entendia-se ser necessário decidir sobre a Reclamação nº 11323, originária de feito que tramitava perante a Justiça no Estado de São Paulo, envolvendo um outro tipo de benefício.

O fato, porém, é que a ordem liminar para pronto pagamento não foi deferida, pois o então relator entendeu que se fosse auxílio-moradia deveria ser analisado caso a caso, dada a excepcionalidade em que poderia ser pago o pretendido benefício. De certa forma já se poderia antever o desfecho da ação…

Sustada a ação originária nº 1649, em que pese sua repercussão geral, não impediu que alguns juízes federais promovessem outra como o mesmo objeto: a ação originária nº 1773. É de chamar a atenção o fato da ação originária (AO 1773) não ter sido distribuída ao relator da anterior (AO 1649), pois igualmente de repercussão geral.

E foi, na segunda, que se deu a concessão do benefício, cujo ação tem julgamento para os próximos dias, despertando apreensão entre os magistrados e membros do Ministério Público.

Igualmente digno de nota o fato de, após dois anos de proferida a ordem liminar na ação originária nº 1773, quando concedido o benefício do auxílio-moradia a todos os magistrados federais, a Associação dos Juízes Federais – Ajufe ter requerido, em 16/11/2016, sua admissão como amicus curiae.

Na mesma época, em 29/11/2016, pede desistência daquela outra ação originária (AO nº 1649), por ela mesma proposta, ao argumento de perda superveniente do objeto, como se a resolução do Conselho Nacional de Justiça tivesse resolvido a situação, e nenhuma relação tivesse com a ação originária nº 1773 onde concedido o pagamento do auxílio-moradia de forma ampla e irrestrita.

Ocorre que o atual Relator da AO nº 1649, ministro Luís Roberto Barroso, decidiu levá-la a julgamento, estando pautado para o dia anterior aquele da AO nº 1773, qual seja, no dia 21/3/2018.

Diante da não acolhida, pura e simples, do pedido de desistência, a associação de classe parece recear que o julgamento em data anterior ao da AO nº 1773, diante da manifestação de alguns integrantes da Corte sobre o assunto, venha a suspender o pagamento do auxílio-moradia aos magistrados do País, concedido no feito sob a relatoria do ministro Fux.

Enfim, o tema, auxílio-moradia, será objeto de apreciação na AO nº 1649, quando não poderá ser ignorado o despacho inicial que negou a tutela antecipada, pois não reconhecida a natureza alimentar ao referido benefício, nem sua natureza indenizatória, na medida em que não estaria indenizando situação temporária e com certas especificidades.

Assim, a ação originária nº 1773, proposta por alguns juízes federais, será apreciada tendo como precedente o decidido na ação originária nº 1649, patrocinada pela Ajufe e na qual não obteve o mesmo êxito.

Veremos se tanta astúcia processual conseguirá controlar todos os meandros regimentais para afastar a lei, a Constituição, desprezando a cidadania indignada.