Duas leituras sobre a prisão após condenação em segundo grau

Frederico Vasconcelos

A Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota técnica, enviada aos ministros do Supremo Tribunal Federal, em que se manifesta contra a decretação de prisão após condenação em segunda instância.

Dois dias depois, o Fórum Nacional de Juízes Criminais (Fonajuc) emitiu nota pública a título de contraponto à manifestação da AJD.

O Blog publica os dois pronunciamentos.

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Eis a nota da Associação Juízes para a Democracia:

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A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA – AJD, entidade não governamental, sem fins lucrativos ou corporativistas, que congrega juízes de todo o território nacional e que tem por objetivo primordial a luta pelo respeito aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, vem apresentar NOTA TÉCNICA a respeito da inconstitucionalidade, diante da inteligência do art. 5º, LVII, da Constituição da República, prisão decretada após decisão proferida em segundo grau de jurisdição, sem a existência do trânsito em julgado.

1. O art. 5º, LVII, da Lei Maior, institui a garantia de o indivíduo somente ser privado de sua liberdade com arrimo em decisão condenatória quando esta transitar em julgado, ou seja, na hipótese de não haver mais recurso cabível. Trata-se de dispositivo categórico, imperativo e que, justamente em razão de não suscitar qualquer dúvida, não admite interpretação e sim a aplicação do que está efetivamente escrito.

2. A tentativa de supressão da garantia mencionada encontra-se dentro de um perigoso contexto de relativização de direitos e garantias fundamentais, tendência que busca se perpetrar com o desígnio ilusório de, no caso, diminuir a impunidade. Olvida-se, no entanto, que as garantias processuais penais, importantes conquistas civilizatórias, não se traduzem em obstáculo para a efetiva aplicação da lei penal, mas sim em formulações destinadas a impedir o arbítrio estatal, dificultar o erro judiciário e conferir um tratamento digno de maneira indistinta a todos os indivíduos.

3. A Carta Magna expressamente proíbe, a não ser no caso de prisão cautelar, que o indivíduo venha a ter sua liberdade suprimida quando ainda houver recurso contra a decisão condenatória. No mesmo sentido da garantia constitucional, estão disciplinados dispositivos previstos na legislação ordinária (art. 283 do Código de Processo Penal e art. 105 da Lei das Execuções Penais, lei esta que exige o trânsito em julgado inclusive para o cumprimento da pena restritiva de direitos – art. 147 – e pagamento de multa – art. 164). Sendo plena e comprovadamente possível as instâncias superiores modificarem questões afetas à liberdade, seu cerceamento antecipado mostra-se incompatível com nossa realidade constitucional.

4. A pavimentação do Estado Democrático de Direito somente é possível dentro da estrita observância da Constituição da República. O desvio dos imperativos constitucionais, longe de trazer os efeitos almejados por aqueles que insistem em fazê-lo, somente se traduzirá em prejuízos para o indivíduo e a coletividade.

5. A Associação Juízes para a Democracia, por considerar a prisão decorrente de decisão condenatória sem o trânsito em julgado incompatível com o cumprimento da Constituição da República, vem manifestar-se contrária à relativização da referida garantia constitucional.

São Paulo, 27 de março de 2018.
Associação Juízes para a Democracia (AJD)

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Eis a nota do Fonajuc:

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O Fonajuc – Fórum Nacional de Juízes Criminais, fórum científico que congrega centenas de magistrados brasileiros, vem a público manifestar-se acerca da interpretação jurídica da prisão do condenado por sentença exarada em segundo grau de jurisdição.

Preliminarmente, afirma-se a ausência de qualquer conflito de interesse e o caráter acadêmico do texto, em atendimento às normas de regência e nos estritos termos da liberdade de expressão, albergada como cláusula pétrea constitucional.

O Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento plenário do Habeas Corpus 126.292, de relatoria do ministro Teori Zavascki, firmou entendimento sobre o cabimento da prisão daquele condenado já em segundo grau de jurisdição.

O julgado em si (https://bit.ly/2d52m0f) traz elementos jurídicos suficientes para fundamentar tal proceder, que apenas retoma entendimento já fixado pelo próprio STF, mesmo após a Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido foram as Súmulas nº 716 e 717 da Corte Suprema.

É dever realçar que os recursos especial e extraordinário não possuem efeito suspensivo, isso é, não obstam o cumprimento imediato da pena, uma vez caracterizada a formação da culpa de modo consistente, tendo sido garantido ao acusado o duplo grau de jurisdição.

A culpa, isto é, o exame da autoria e da materialidade conforme a prova dos autos, é exaurida no âmbito da jurisdição ordinária, em outras palavras, nos primeiro e segundo grau de jurisdição, restando ao STJ e ao STF a análise do direito em tese, considerando a vedação a esses tribunais superiores do reexame fático-probatório.

Nas palavras do ministro Teori Zavascki, “a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual”.

Trata-se de interpretação consentânea ao ordenamento jurídico pátrio e que vai ao encontro da necessidade do Brasil, país marcado pela impunidade, especialmente no tocante a réus com poderio político/econômico, e que regularmente busca flexibilizar as normas penais, em um laxismo incompatível com a realidade e a aplicação da lei no restante do mundo.

Nesse sentido, o Brasil está isolado em relação aos demais países que permitem a prisão, se não a partir do julgamento em primeiro grau, ao menos a partir do segundo, como realçou a ministra Ellen Gracie, no HC 85.886: “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema”.

O próprio julgado referência traz estudo sobre o tema abrangendo países como Inglaterra, EUA, Canadá, Alemanha, França, Portugal, Espanha e Argentina, demonstrando que a decisão paradigmática da relatoria do ministro Teori Zavascki encontra não só amplo respaldo jurídico, como vínculo com a realidade.

Conclui-se, portanto, que não existe conflito entre a presunção de inocência, direito fundamental, e o cumprimento do julgado proferido em segundo grau, nos termos do ordenamento jurídico em vigor, garantidos a ampla defesa e o contraditório.

Entendimento divergente tende a consolidar a situação de impunidade e o estímulo da prática criminosa no país, com resultado de mais de 60 mil homicídios anualmente, além de delitos patrimoniais, estupros, redes de pedofilia, tráfico de pessoas e outros tantos ilícitos levados a cabo pelas organizações criminosas de caráter transnacional, a quem a leniência penal favorece, em desamparo aos direitos fundamentais da vítima e da sociedade, que, nos termos do garantismo integral, devem ser ponderados e equiparados àqueles assegurados ao réu.

O Fonajuc reafirma sua confiança no Supremo Tribunal Federal e no Judiciário brasileiro, no sentido de que a criação das leis e sua interpretação devem estar em compasso com a realidade, sempre em respeito às conquistas civilizatórias firmadas nas cláusulas pétreas da Constituição Federal.

Brasil, 29 de março de 2018.