Marielle Franco e a esperança que não pode morrer em vão

Frederico Vasconcelos

O texto a seguir, sob o título “O que morre com Marielle?”, é um manifesto assinado por 164 juízas e juízes federais.

***

No dia 14 de março de 2018, Marielle Franco, mulher, negra, lésbica, vereadora eleita com mais de 46.000 votos e uma plataforma de defesa de direitos das populações marginalizadas, foi brutalmente assassinada.

Marielle, com o orgulho de ser “cria da Maré”, em uma metáfora perfeita, referiu a si própria como “a flor que rompe o asfalto”, numa alusão a Drummond.

Socióloga pela PUC-Rio e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense, Marielle pavimentou na militância a conquista do mandato de vereadora, amplificando as lutas pelos direitos humanos das populações periféricas.

Ela superou os obstáculos decorrentes da abissal desigualdade: a precariedade do transporte coletivo; a distância dos locais de trabalho, de estudo e de outros serviços públicos inexistentes ou deficitários; a erotização e a objetificação que atinge de forma mais intensa o corpo da mulher negra; a desigualdade nas condições de acesso a postos dignos de trabalho; a luta diária pela sobrevivência em face do crime organizado e da ação discriminatória dos aparatos de segurança pública.

Apesar disso tudo, Marielle foi mãe, filha, favelada, vereadora, acadêmica, militante, mulher, guerreira… dimensões que lhe permitiram quebrar as múltiplas e reforçadas barreiras que se erguem nos caminhos de milhões de brasileiros.

Não o foi para dar força ao discurso meritocrático, assentado em premissas equivocadas e ultrapassados preconceitos, mas para denunciar a injustiça e a pobreza de um país estruturalmente machista e racista, que reserva lugares subalternos para alguns, desprezando o valor de sua contribuição no coral de vozes da democracia.

Sua palavra era de emancipação e liberdade, dando voz às lágrimas vertidas por tantas mães em razão da matança que testemunhou e contra a qual lutou até o último ato.

Se o discurso de Marielle deu representatividade a tantas pessoas, também despertou reações proporcionais à sua força e verdade. Essas reações que não causam perplexidade, num país criado a partir do genocídio indígena e forjado na tradição escravista, precisam ser combatidas.

Não é por outra razão que, mesmo diante da violência de um assassinato que repugna até os mais embrutecidos, os fantasmas da culpabilização e até da criminalização da vítima tenham feito suas agourentas e medíocres aparições.

Marielle era um sopro de esperança: esperança numa democracia em que sua voz de mulher negra, ao furar a barreira do asfalto, pôde ser, de fato, ouvida, registrada e integrada de forma efetiva à esfera pública.

A esperança fundada na certeza de que só o protagonismo de muitas minorias pode conferir à democracia uma credibilidade radical. Como diz Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontra” (1).

A democracia brasileira, com a cruel execução de Marielle, dá seu grito de alerta, como quem afigura os últimos passos num cadafalso, rumo ao abismo das incertezas de uma comunidade política sem identidade e sem direitos.

O que morre com Marielle?

Uma parte de nós. Uma parte de nossa alegria, de nossos sorrisos, de nossos sonhos, de nossa crença na democracia e na justiça.

A mulher negra que ousou chegar ao poder, foi morta no mês tradicionalmente dedicado à lembrança das lutas das mulheres. Nada pode ter um simbolismo mais calculado e mais nefasto.

O que Marielle faz germinar? Em meio à tristeza inevitável, a ação obrigatória.

Não apenas apurar com efetividade e de acordo com o devido processo legal as responsabilidades por seu assassinato; é preciso prosseguir no seu exemplo e na sua trilha, insistindo para que justiça e equidade fortifiquem milhões de flores teimosas, rompendo o asfalto das injustiças e transformando o deserto urbano da desigualdade de oportunidades.

A mensagem do ódio não pode reverberar.

A flor que furou o asfalto não pode morrer em vão.

—–
(1) http://www.ihu.unisinos.br/166-sem-categoria/570053-quando-a-mulher-negra-se-movimenta-toda-aestrutura-da-sociedade-se-movimenta-com-ela. Acesso em 11/04/2018.