O machismo no Judiciário
Ao comentar a iniciativa de juízas que pediram desfiliação da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) sob a alegação de “machismo institucional”, a advogada Maria Berenice Dias citou o exemplo dos ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que interromperam e questionaram o voto da ministra Rosa Weber no julgamento do habeas corpus de Lula.
“Jamais fariam isso com outro ministro”, disse.
Primeira juíza e desembargadora do TJ do Rio Grande do Sul, a advogada considerou essas intervenções “um escárnio”.
Veja reportagem completa sobre a desfiliação de magistradas publicada na Folha nesta segunda-feira (16).
Quando a desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, do Tribunal de Justiça de São Paulo, questionou valores do orçamento e contratos suspeitos, em outubro último, foi interrompida várias vezes durante uma sessão do Órgão Especial.
Por equívoco, um desembargador a chamara de Cármen Lúcia –e pediu desculpas. Em seguida, outros membros da corte passaram a repetir o nome da presidente do STF, rindo e simulando equívoco, quando se referiam ou se dirigiam a Maria Lúcia.
A desembargadora diz que sua carreira foi marcada por discriminações.
Quando tomou posse como juíza, em 1988, Maria Lúcia ouviu de um desembargador: “A senhora sorri demais para uma juíza”.
Na época, um corregedor-geral explicou por que era contra mulheres na magistratura: “Mulheres servem para cuidar da família, procriar e pilotar o fogão”.
“Fui vítima, profundamente, de machismo frontal, não disfarçado, hoje chamado de sexismo”, diz ela.
Em 2015, a juíza e escritora Andréa Pachá, do TJ do Rio de Janeiro –que recentemente também pediu desfiliação da AMB– escreveu neste Blog um artigo sob o título “O Judiciário é machista”.
“A afirmação de que não há machismo na Justiça vem da mesma ideia de que uma mentira repetida muitas vezes vira verdade”, afirmou no texto.
“As piadas sexistas são aceitas e desqualificadas como ofensas porque, afinal, brincadeiras não são manifestação de machismo”, registrou Pachá.
Ao comentar esse artigo, o juiz federal Roberto Wanderley Nogueira, do Recife, afirmou: “Machista só, não! O Poder Judiciário não é. Há muito mais de discriminação bem guarnecida e dissimulada nos Palácios da Justiça do que possa a Nação sequer desconfiar, haja vista o seu hermetismo que impede o pleno exercício da crítica social”.
“Violência contra a mulher em uma sociedade injusta e desigual como a nossa se insere no contexto das demais violências por motivos vários como etnia, crença religiosa, condição social, física, mental, sensorial etc.”, disse Nogueira.
A polêmica sobre as discriminações no Judiciário ganhou maior evidência depois da criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2004.
Em 2005, um estudo elaborado por duas ONGs concluiu que a participação da mulher na Justiça é tanto menor quanto maior é a instância julgadora.
Nessa época, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o machismo convivia com o nepotismo. O holerite dos magistrados era conhecido como “salário-família”. Pelo menos 12 desembargadores mantinham suas mulheres na folha de pagamento do tribunal sem prestar concurso.
Em 2007, o juiz Marcelo Semer, de São Paulo, publicou comentário neste Blog sobre o fim das entrevistas secretas nos concursos de ingresso à magistratura.
“Na entrevista, costumeiramente, questões constrangedoras são abordadas, desde sutis indagações acerca da sexualidade de candidatos, até temas que possibilitem o controle ideológico dos pretendentes às vagas de juiz”, afirmou Semer.
Entre as perguntas feitas por desembargadores paulistas naquela época, foi mencionada a seguinte: “Mas a senhora está grávida. Não acha que já começaria a carreira como um estorvo para o Poder Judiciário”?
Em 2010, o CNJ afastou por dois anos um juiz do município mineiro de Sete Lagoas acusado de machismo. Ele afirmara que “a desgraça humana começou por causa da mulher”. Classificou a Lei Maria da Penha como um “monstrengo tinhoso”.
A então corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, sugeriu que o juiz fosse submetido a exames de sanidade mental. Depois de dois anos de afastamento, o magistrado teria de provar que estava “curado do machismo” ou do suposto desequilíbrio mental.
O então vice-presidente do CNJ, ministro Ayres Britto, afirmou que o juiz incitou o preconceito contra a mulher.
O comportamento do juiz, segundo o ministro, “toca as raias do fundamentalismo”.
Quando há suspeita de favorecimento a mulheres e parentes, o silêncio costuma prevalecer.
Um concurso para juízes do TJ de Minas Gerais foi questionado no CNJ porque, entre os candidatos aprovados, 20 eram parentes de juízes –entre os quais duas filhas do então presidente.
O CNJ não viu irregularidade no caso. Acolheu as informações do tribunal. Considerou que “os atos, todos, se consumaram eticamente”; que o “presidente não teve participação em nenhuma etapa” do concurso e que eventual anulação poderia “ferir a segurança jurídica”.
Tempos depois, às vésperas de atingir a aposentadoria compulsória, um desembargador do TJ-MG conseguiu transferir de seu gabinete para o gabinete de seu filho, também desembargador, uma advogada de suas relações muito próximas que havia contratado como assessora. O arranjo previa que ela receberia os vencimentos, mas não poderia ir ao tribunal.
“O mundo penal ainda é dos homens”, afirmou a desembargadora Kenarik Boujikian, do TJ de São Paulo, em entrevista publicada na CartaCapital em janeiro de 2016. Ela sustentou que foi alvo de machismo na corte.
Em agosto de 2017, o CNJ anulou, por 10 votos a 1, a pena de censura que o Órgão Especial do TJ-SP aplicara a Kenarik, acusada de ter violado o princípio da colegialidade e libertado réus que estavam presos por mais tempo do que a pena fixada.
Na primeira sessão como presidente do Supremo, a ministra Cármen Lúcia declarou: “Há sim discriminação contra a mulher, mesmo em casos nossos de juízas, que conseguimos chegar à posição de igualdade”.
Primeira mulher nomeada para o STJ, Eliana Calmon disse nunca ter sofrido discriminação no ambiente de trabalho pelo fato de ser mulher.
“Essa restrição não vem só dos homens. Vem também das próprias mulheres, que deixam de se candidatar aos cargos de comando. Quando me candidatei, muitas colegas diziam que não adiantava”, afirmou.
Em março de 2012, em entrevista à jornalista Daniela Pinheiro, da revista Piauí, Eliana já havia afirmado não gastar “um minuto” pensando em discriminação de gênero, apesar de considerar o Judiciário um meio machista e chauvinista.
“Eu não me ligo nisso, nem presto atenção porque acho que as mulheres acabam se preocupando demais com esse assunto”, afirmou.
Eliana sofreu forte pressão ao afirmar que havia “bandidos de toga” no Judiciário, mesmo ressalvando que a corrupção só alcança uma minoria inexpressiva dos juízes.
Sobre críticas e comentários que recebeu, inclusive de juízes de seu tribunal, ela concluiu:
“Ficam querendo me diminuir me chamando de louca, de doidivana. É a maneira que costumam usar para desmerecer uma mulher. ”