Decisão do STF é forma de confundir

Sob o título “O Supremo Tribunal Federal está se distanciando do conceito de conexão”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.

Segundo o autor, ao comentar a decisão da 2ª Turma do STF, “é preciso ser estrangeiro aos fatos para desconhecer que os casos começaram a ser investigados em Curitiba e, portanto, pegar alguns papeis e enviá-los para São Paulo, por qualquer minudência jurídica, é uma forma de confundir”.

“A Petrobras sempre foi ordenhada para financiar o esquema”, diz.

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I – O FATO

A decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal de tirar da jurisdição do juiz Sergio Moro, de Curitiba, partes da delação da Odebrecht, sob a alegação de que não têm relação com a corrupção da Petrobras, abre um caminho perigoso para a sociedade e benéfico para Lula, que pode chegar até à anulação da condenação do ex-presidente pelo TRF-4.

O objetivo da defesa é, anulando a condenação de segunda instância, tornar o ex-presidente elegível, livrando-o da Ficha Limpa. Ao fim de uma batalha judicial que já leva vários meses, a tese da defesa de que Sergio Moro não é o juiz natural para julgar os casos não diretamente ligados à corrupção da Petrobras ganhou a chancela de três ministros do STF: Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.

O entendimento traçado no Supremo Tribunal Federal considera que se trata de competência material pelo critério rationi loci.

II – A COMPETÊNCIA MATERIAL

A competência material leva em conta as características da questão criminal, sendo estudada sobre 3(três) aspectos:

a) Critério ratione materiae: objetiva identificar qual a Justiça competente e os critérios de especialização, tendo em conta a natureza da infração;

b) Critério ratione personae: leva em consideração, do que se lê no artigo 69 do Código de Processo Penal, a importância das funções desempenhadas por determinadas pessoas, que serão julgadas perante o tribunal. É a hipótese do foro por prerrogativa de função;

c) Critério ratione loci: considera, a teor do artigo 69, I e II, do Código de Processo Penal, o juízo territorialmente competente, considerando como parâmetro o local de consumação do delito, além do domicílio ou residência do réu.

Com o devido respeito há evidente prevenção, como bem sustentado pelo Ministério Público na fundamentação que foi apresentada e acima resumida. Leva-se em conta evidente critério de conexão.

III – A PREVENÇÃO

A prevenção é a razão da reunião desses processos.

A prevenção se dá quando, tendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, venha um dele, antecipando-se aos outros praticar algum ato ou determinar alguma medida, mesmo antes de oferecida a denúncia(prisão preventiva, fiança) que o torne competente para o processo, excluídos os demais” (Paulo Lúcio Nogueir. Curso Completo de Processo Penal, 3ª ed., Saraiva. l987, pág. 66).

Preventa estará a jurisdictio de um juízo, quando este preceder, antecipar-se aos demais juízes igualmente competentes em algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anteriormente ao oferecimento da denúncia ou queixa.

Prevenção é critério de fixação da competência.

Prevenção é ato de prevenir, e prevenir (de prevenire) é vir antes, chegar antes, antecipar-se etc. Diz-se, então, prevenida ou preventa a competência de um juiz quando ele se antecipou a outro, também competente, na prática de ato do processo ou de que a este se relacione, como sucede com a prisão preventiva, a em flagrante, as buscas e apreensões, o reconhecimento de pessoas ou coisas etc.

IV – A LAVA JATO, SUAS INVESTIGAÇÕES E A CONEXÃO E CONTINÊNCIA

Deflagrada em 17 de março de 2014 a chamada “Operação Lava Jato” desmontou um esquema de lavagem de dinheiro e evasão de divisas que movimentou enorme quantia de dinheiro. Informa-se que, de acordo com a Polícia Federal, as investigações identificaram um grupo especializado no mercado clandestino de câmbio.

Por certo, a sociedade de economia mista Petrobras está no centro das investigações, que apontam ex-dirigentes daquela empresa envolvidos no pagamento de propina a políticos e executivos de empresas que firmaram contratos com a petroleira.

Como já salientado, foram diversos os ilícitos cometidos que estão sendo investigados: peculato; corrupção passiva e ativa(sendo que há uma vertente onde se argumenta pela existência de crime de concussão, forma de extorsão promovida por servidor público); frustrar ou fraudar licitação mediante ajuste ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório com intuito de obter para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação; organização criminosa, formação de cartel, todos em concurso material(artigo 69 do Código Penal).

Além deles, pode-se falar no cometimento, dentre outros, de delitos de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

Sabe-se que essa operação levou à prisão de Alberto Youssef, que foi apontado como “chefe do esquema de lavagem de dinheiro e evasão de divisas”.

Vem a pergunta: Que razões levam à competência da Justiça Federal de primeira instância (que se encerra quando houver investigação envolvendo parlamentar federal, quando então a competência será do Supremo Tribunal Federal), para investigar, instruir e julgar?

Dir-se-á que há outros crimes conexos, de competência da Justiça Estadual, cometidos. Como definir a competência?

Sabe-se que a Petrobras é uma sociedade de economia mista e a competência para instruir e julgar crimes contra ela cometidos é da Justiça Estadual. Como disse Eugênio Pacelli (Curso de processo penal, 16ª edição, pág. 222), tanto a competência da Justiça Federal quanto a da Estadual são fixadas constitucionalmente, daí porque se constituem ambas, no juiz natural para os crimes federais e para os crimes estaduais, respectivamente. A opção pela reunião dos processos pode ser explicada pela necessidade de preservar o princípio da unidade e coerência das decisões judiciais.

No concurso entre crimes conexos e ou continentes da competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual, prevalecerá a da primeira, segundo entendimento já sumulado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a teor da Súmula 122. O motivo: a competência federal vem expressamente definida, ao contrário da estadual, que seria residual.

É dito na Súmula 704 do STF: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.

Conexão pressupõe a pluralidade dos fatos e a continência pressupõe a unidade do fato. No artigo 76 do CPP, que trata da conexão, o traço fundamental para a conexão é estabelecido pela existência de dois ou mais fatos, dos quais resultam duas ou mais infrações, que são interligadas por um vínculo causal de ordem penal(I e II) ou entrelaçadas por um liame de cunho precipuamente processual(III) que aconselha a junção dos processos. O suporte da continência(artigo 77, I e II) está na existência de um único fato gerador de uma ação. Tanto a conexão como a continência são conhecidas causas de modificação da competência.

Estudemos as formas de conexão:

1) Conexão intersubjetiva(artigo 76, I, Código de Processo Penal), onde há infrações penais interligadas que devem ser praticadas por 2(duas) ou mais pessoas:
1.1.Conexão intersubjetiva por simultaneidade: na hipótese, ocorrem várias infrações praticadas ao mesmo tempo por várias pessoas reunidas que não estão de forma prévia acordadas;

1.2.Conexão intersubjetiva concursal: ocorre quando várias pessoas, previamente acordadas, praticam várias infrações embora diverso o tempo e o lugar;

1.3.Conexão intersubjetiva por reciprocidade: ocorre quando várias infrações são praticadas, por diversas pessoas, umas contra as outras, havendo o que se chama de reciprocidade na violação de vínculo jurídico, algo que se distancia do crime de rixa, crime único.

2) Conexão objetiva, material, teleológica ou finalística (artigo 76, II, do Código de Processo Penal): ocorre quando uma infração é praticada para facilitar ou ocultar outra, ou para conseguir impunidade ou vantagem;

3) Conexão instrumental ou probatória(artigo 76, III, do Código de Processo Penal): ocorre quando a prova de uma infração ou de suas elementares influir na prova de outra infração;

A chamada conexão na fase preliminar investigatória nada mais é que uma forma de conexão instrumental, quando se dá a reunião dos inquéritos, na Polícia, com o objetivo de obter a verdade real e a melhor forma de acompanhar a investigação.

Passo à continência.

Há continência, quando duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração (coautoria) e ainda no concurso formal, erro na execução (aberratio ictus) e resultado diverso do pretendido (aberratio delicti).

Todas as condutas que têm vinculação ou ainda venham a ser ramificação daquela identificada de remessa de divisas ao exterior estão sob o crivo da Vara Federal da Seção Judiciária do Estado do Paraná, que foi identificada como competente para instruir e julgar processos que não envolvam pessoas com prerrogativa de foro(parlamentares e ministros).

Quanto a esses, a competência é do Ministro do Supremo Tribunal Federal prevento para julgamento dos processos em discussão na citada operação. Se esses fatos não tiverem a mesma origem ou vínculos de conexão não há que falar na prevenção.

A Odebrecht tinha um departamento secreto no qual estruturava o pagamento de suborno e a distribuição de vantagens. Não havia propinas em compartimentos estanques que, por algum tipo de compliance, não pudessem ser usadas em outra ponta do mesmo negócio de comprar benefícios no setor público.

É preciso também ser estrangeiro aos fatos para desconhecer que esses casos começaram a ser investigados em Curitiba e, portanto, pegar alguns papeis e enviá-los para São Paulo, por qualquer minudência jurídica, é uma forma de confundir.

No voto, o ministro Dias Toffoli disse que o empresário Emílio Odebrecht falou em hidrelétricas do Rio Madeira como parte dos benefícios a Lula. Alexandrino Alencar falou em gastos no sítio de Atibaia feitos “como contrapartida pela influência política exercida pelo ex-presidente”, e Marcelo Odebrecht disse que os valores para a compra do Instituto Lula sairiam da conta “amigo”, onde foram provisionados R$ 35 milhões, em 2010, “para suportar gastos e despesas do então presidente Lula”.

Diante disso, o ministro concluiu: “não diviso, ao menos por ora, nenhuma imbricação específica dos fatos descritos nos termos de colaboração com desvios de valores operados no âmbito da Petrobras”.

Como não se pode acusar o ministro, e os que o acompanharam, de ingenuidade, a conclusão é de que eles se esqueceram da forma imbricada como a engenharia financeira da corrupção sempre funcionou. Tirou-se dinheiro de vários negócios com o governo, mas a Petrobras sempre foi ordenhada para financiar o esquema.

Na verdade, a Lava Jato é maior do que a investigação sobre os desvios na estatal.

A decisão também não impede pedido de compartilhamento dos depoimentos e respectivos anexos entre os juízes, como o próprio Sergio Moro. Também os procuradores da Força Tarefa da Operação Lava-Jato enviaram a Moro um documento em que rebatem argumentos da maioria da Segunda Turma e reafirmam que as investigações continuarão sem prejuízo.

A referência à “investigação embrionária” no voto de Dias Toffoli é rebatida pelos procuradores, que afirmam ser “fato notório” que houve uma larga e profunda investigação conduzida sobre os fatos envolvendo o sítio de Atibaia, que culminou no ajuizamento e já processamento avançado da ação penal.

Eles reafirmam “a existência de investigações e ações penais relacionadas a benefícios indevidos em favor do ex-presidente Lula” e argumentam que os que fizeram delação premiada estabelecem a ligação das vantagens indevidas, por parte do Grupo Odebrecht, à obtenção de benefícios em detrimento da Petrobras.

Essa relação de conexidade, negada por Dias Toffoli, torna-se ainda mais evidente, dizem os procuradores, em razão do processamento de ações penais por fatos análogos.

A vinculação dos fatos com propinas pagas no âmbito da Petrobras, afirmam os procuradores, decorre de um amplo conjunto de provas, entre elas documentos, perícias, testemunhas e depoimentos dos colaboradores inseridos nos autos das investigações e ações penais que tramitam no Juízo de Curitiba.