Um voto firme contra o assédio sexual
“A recorrente ‘foi importunada por um homem que se postou atrás da mesma, esfregando-se na região de suas nádegas’, sendo que, ao se queixar com o agressor, verificou que ele ‘estava com o órgão genital ereto’ e que, por o ter xingado, foi hostilizada pelos demais passageiros, que lhe chamaram de ‘sapatão’.”
A ministra Nancy Andrighi incluiu essa descrição no voto como relatora do julgamento em que a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça condenou a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) a pagar R$ 20.000,00 a título de reparação de danos morais a uma passageira que alegou ter ficado “totalmente abalada psicologicamente” com a agressão sexual.
A mulher sofreu assédio em um vagão de trem na estação de Guaianazes, na zona leste do município de São Paulo, quando retornava do trabalho para casa.
A primeira e a segunda instância julgaram improcedente o pedido de indenização formulado contra a CPTM, por entenderem que a agressão praticada por terceiros é fato fortuito que afasta a responsabilidade objetiva da empresa, inexistindo a obrigação de reparar o dano.
“É inegável que a vítima do assédio sexual sofre um evidente abalo em sua incolumidade físico-psíquica, cujos danos devem ser reparados pela prestadora do serviço de transporte de passageiros”, entendeu Andrighi. Ela registrou que a recorrente permanece até o momento “com uma enorme insegurança ao ingressar em transportes coletivos, por conta do trauma emocional”.
“O agressor tocou a vítima, de maneira maliciosa, por muitas vezes. Há, assim, inegável violação de sua incolumidade física, ao ser tocada dessa forma, em violação ao dever do transporte incólume do passageiro”, entendeu Andrighi.
O agressor também importunou sexualmente outra passageira. Foi lavrado boletim de ocorrência junto à Delegacia do Metropolitano.
A empresa informou que, tão logo acionada pela autora-recorrente e pela outra vítima, na estação Guaianazes, efetuou a detenção do autor dos atos libidinosos –à época, um menor com 16 anos de idade– que foi conduzido à autoridade policial, conforme registrado em boletim de ocorrência.
“Note-se, contudo, que o fato (isto é, assédio sexual) está se tornando corriqueiro na mesma Estação de Guaianazes. Embora a recorrida [CPTM] –em cumprimento de seu dever– tenha localizado e conduzido o agressor à delegacia, nada mais fez para evitar que esses fatos ocorram”, afirmou a relatora.
“Conforme as informações da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, onde ocorreu o fato do recurso em análise, houve um aumento de 35% no número de assédios sexuais entre janeiro e dezembro de 2017, em relação ao mesmo período de 2016. Inclusive, conforme noticiado pela imprensa, um cidadão foi denunciado por estupro ao ejacular sobre passageira de ônibus, fato ocorrido também no Município de São Paulo”, registrou.
“O ciclo histórico que estamos presenciando exige um passo firme e corajoso, muitas vezes contra uma doutrina e jurisprudência consolidadas. É papel do julgador, sempre com olhar cuidadoso, tratar do abalo psíquico decorrente de experiências traumáticas ocorridas durante o contrato de transporte”.
“O momento é de reflexão, pois não se pode deixar de ouvir o grito por socorro das mulheres, vítimas costumeiras desta prática odiosa, que poderá no futuro ser compartilhado pelos homens, também objetos potenciais da prática de assédio”, afirmou Andrighi.
Ainda segundo a ministra, “em uma sociedade nitidamente patriarcal como a brasileira, a transição da mulher da esfera privada –isto é, doméstica– para a esfera pública –espaço de atuação do homem– revela e dá visibilidade à histórica desigualdade de gênero existente nas relações sociais”.
“Atos de caráter sexual ou sensual alheios à vontade da pessoa a quem se dirige –a exemplo de ‘cantadas’, gestos obscenos, olhares, toques não consentidos, entre outros– revelam manifestações de poder do homem sobre a mulher, mediante a objetificação sexual de seus corpos”, concluiu.