Quem julga governador por crime comum
“Por ilícitos cometidos fora do cargo e fora de sua função o governador deve ser julgado em primeira instância, que é o foro de competência para julgamento de todos os cidadãos, independente do cargo que exerça.”
A conclusão é de Rogério Tadeu Romano, advogado e ex-procurador Regional da República, no artigo a seguir, sob o título “A quem compete julgar o governador do estado por crime comum?”
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Compete ao Superior Tribunal de Justiça, segundo o artigo 105 da CF:
I – processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
Recentemente, segundo o site do STF, por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o foro por prerrogativa de função conferido aos deputados federais e senadores se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas.
A decisão foi tomada na sessão do dia 3 de maio do corrente ano no julgamento de questão de ordem na Ação Penal (AP) 937. O entendimento deve ser aplicado aos processos em curso, ficando resguardados os atos e as decisões do STF – e dos juízes de outras instâncias – tomados com base na jurisprudência anterior, assentada na questão de ordem no Inquérito (INQ) 687.
Prevaleceu no julgamento o voto do relator da questão de ordem na AP 937, ministro Luís Roberto Barroso, que estabeleceu ainda que, após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
Seguiram integralmente o voto do relator as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia, presidente da Corte, e os ministros Edson Fachin, Luiz Fux e Celso de Mello. O ministro Marco Aurélio também acompanhou em parte o voto do relator, mas divergiu no ponto em que chamou de “perpetuação do foro”. Para ele, caso a autoridade deixe o cargo, a prerrogativa cessa e o processo-crime permanece, em definitivo, na primeira instância da Justiça.
Ficaram parcialmente vencidos os ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski, que reconheciam a competência do STF para julgamento de parlamentares federais nas infrações penais comuns, após a diplomação, independentemente de ligadas ou não ao exercício do mandato. E ainda os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que deram maior extensão à matéria e fixaram também a competência de foro prevista na Constituição Federal, para os demais cargos, exclusivamente para crimes praticados após a diplomação ou a nomeação (conforme o caso), independentemente de sua relação ou não com a função pública em questão.
Num ordenamento jurídico dotado de uma constituição escrita considerada como ordem jurídica fundamental do Estado e da sociedade, pressupõem-se como pontos de partida da tarefa de concretização-aplicação das normas constitucionais: a) consideração da norma como elemento primário do processo(interpretativo); b) a mediação(captação, obtenção) do conteúdo(intenção) semântico do texto Constitucional.
Sabe-se que são elementos da norma: a) o programa normativo que é o resultado de um processo parcial de concretização, assente na intepretação do texto normativo; b) o setor normativo que é o resultado do segundo processo parcial de concretização assente sobretudo na análise dos elementos empíricos. A norma constitucional é um conjunto de enunciado linguistico e de fatos jurídicos e materiais.
O que se quer é concretizar, obter a norma de decisão própria, quanto a adoção da norma-princípio em que a Constituição adota a República.
Não há República sem que se possa falar em igualdade.
Sobre a República ensinou Roque Antônio Carraza (Curso de direito constitucional tributário, 24ª edição):
“República é o tipo de governo, fundado na igualdade formal das pessoas, em que detentores do poder político exercem-no em caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com responsabilidade.
Analisemos, com alguma detença, os elementos desta definição.
a) É o tipo de governo: enquanto Federação é forma de Estado, República é forma de Governo. Ao lado da Monarquia, da Ditadura etc., a República é um dos meios que o Homem concebeu para governar os povos. Teoricamente, não é melhor nem pior que os demais regimes políticos, embora corresponda, ao que tudo indica, á vontade da maioria dos seres humanos, que almejam ser “donos da coisa pública”. Em termos estatísticos, pelo menos, há, no mundo, mais “Repúblicas” (ainda que apenas no “rótulo”) que, por exemplo, Monarquias. O Brasil, desde 1889, é uma República.
De um modo geral, os poderes supremos são conferidos, nas Monarquias, a uma única pessoa, que age em nome próprio, e, nas Repúblicas, a uma coletividade de pessoas ou a seus representantes jurídicos.
Aliás, como observava Soriano, “(…) as diferenças de forma de governo procedem todas do maior ou menor grau de participação do povo no exercício da soberania e na gestão dos negócios públicos”.
b) Fundado na igualdade formal das pessoas: numa verdadeira República não pode haver distinções entre nobres e plebeus, entre grandes e pequenos, entre poderosos e humildes. É que, juridicamente, nela não existem classes dominantes, nem classes dominadas. Assim, os títulos nobiliárquicos desaparecem e, com eles, os tribunais de exceção. Todos são cidadãos; não súditos.
De fato, a noção de República não se coaduna com os privilégios de nascimento e os foros de nobreza, nem, muito menos, aceita a diversidade de leis aplicáveis a casos substancialmente iguais, as jurisdições especiais, as isenções de tributos comuns, que beneficiem grupos sociais ou indivíduos, sem aquela “correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida (…) e a desigualdade de tratamento em função dela conferida”, de que nos fala Celso Antônio Bandeira de Mello.
c) Em que os detentores do poder político: São detentores do poder político, sempre secundum constitutionem e em nome do povo, os legisladores (Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais, Deputados Distritais e Vereadores) e os membros eleitos do Poder Executivo (Presidente e Vice-Presidente da República, Governadores e Vice-Governadores de Estados, Governador e Vice-Governador do Distrito Federal e Prefeitos e Vice-Prefeitos de Municípios).
Ressaltamos que, em caráter originário, o povo (isto é, o conjunto de pessoas físicas que possuem atributos de cidadania) é verdadeiro detentor do poder político. Noutras Palavras, todos os poderes têm sua origem no povo.
A origem popular do poder está proclamada no parágrafo único do art. 1° da CF, que cria, entre nós, a chamada “democracia representativa” ( “Todo poder emana do povo , que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição não nos esqueçamos que, agora, em alguns casos, pode haver, como veremos logo adiante, práticas diretas de democracia, quais o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.
Anda bem, pois, Gomes Canotilho quando sublinha que numa República de cunho liberal (como a brasileira) “(…) todo o poder reside no povo, quer quando à sua origem, quer quanto à titularidade e exercício.
d) Exercem-no em caráter eletivo: na República Brasileira, pelo menos, os que desempenham funções representativas devem ser escolhidos pelo povo, por meio de sufrágios marcados pela lisura. Para que o princípio republicano não se desvirtue, é imprescindível que os detentores do poder político sejam designados, pelo povo, com mandato certo.
e) Representativo (de regra): no Brasil, os que desempenham funções executivas ou legislativas representam o povo, do qual não passam de mandatários. Este juízo transparece cristalino já no precitado parágrafo único do art. 1° de nossa CF.
f) Transitório: um dos traços característicos da “forma republicana de governo” é justamente a temporariedade no exercício de mandatos políticos.
Nela, a transferência do poder ( que emana do povo ) é sempre por razão certo. Se perpétua, os governantes, longe de representarem o povo, formariam uma oligarquia. Não haveria mais República.
Já, no regime monárquico, o soberano é investido no poder de modo permanente. Só o perde com a morte, por vontade própria (renúncia ou abdicação em favor de alguém) ou pelas vias revolucionárias ( deposição ).
Este empenho, nas Repúblicas, em não perturbar no poder os governantes não é novo. Pelo contrário, quando os antigos romanos aboliram a realeza ( em 509 a.C), seu maior cuidado foi estabelecer a temporariedade das funções de seu Cônsul, elevado a dignidade régia, por um ano ( isto não impediu, no entanto, que Augusto fosse reconduzido ao poder, por quarenta anos consecutivos). Foi o temor da persistência do poder pessoal, pela manutenção prolongada das funções executivas nas mãos de um mesmo homem, que ensejou essa medida salutar, no dizer de Esmein.
g) Com responsabilidade: em nossa República, os exercentes de funções executivas respondem pelas decisões políticas que tomarem. Daí por exemplo, o instituto do impeachment (processo de responsabilidade) contemplado no art 86 e seus parágrafos da Carta Magna, que, conquanto se refira expressamente ao Presidente da República, é aplicável, feitas as devidas adaptações, aos Governadores e Prefeitos.”
Aqui se fala em densificação, concretização (construção da norma), destinada a densificá-la.
Dir-se-ia que será feita pelo Supremo Tribunal Federal, na sua atividade de maior guardião da Constituição, uma densificação da norma dentro do que a doutrina chama de atividade de concretização.
Para J.J.Canotilho (Direito constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 1184), uma norma jurídica adquire verdadeira normatividade quando com a “medida da ordenação” nela contida se decide um caso jurídico a decidir mediante:
a) a criação de uma disciplina regulamentadora (concretização legislativa, regulamentar);
b) através de uma sentença ou decisão judicial (concretização judicial);
c) através da prática de atos individuais pelas autoridades (concretização administrativa).
Assim em qualquer dos casos uma norma jurídica que era potencialmente normativa ganha uma normatividade atual e imediata passando a ser uma norma de decisão.
É certo que se poderia falar numa atividade de densificação da norma, que, na lição de J.J.Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 4º edição, pág. 1165), significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito especialmente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos.
Parece tarefa complexa, entretanto, definir com precisão que tipo de ato ilícito tenha ou não ligação com a atividade parlamentar.
Diante disso, com base na decisão do STF, que restringiu o foro por prerrogativa de função a senadores e deputados Federais aos crimes cometidos durante o exercício do mandato e em razão da função pública, o ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, aplicou o princípio da simetria para determinou a remessa à Justiça da Paraíba de ação penal contra o atual governador do Estado, Ricardo Vieira Coutinho.
Na decisão, o ministro aplicou o princípio da simetria e determinou que a ação, na qual o governador é investigado por supostos crimes praticados antes de assumir o cargo, seja distribuída a uma das varas Criminais de João Pessoa (PB).
O ministro Salomão explicou que, ao limitar o foro e estabelecer as hipóteses de exceção, o STF entendeu que seria necessária a adoção de interpretação restrita das competências constitucionais. Por outro lado, apontou o ministro, o princípio da simetria obriga os estados a se organizar de forma simétrica à prevista para a União.
Por essas razões, segundo o ministro Salomão, a mesma lógica deve ser aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça em relação às pessoas detentoras de mandato eletivo com prerrogativa de foro perante ele. Por consequência, apontou o ministro, ações que tiverem trânsito em julgado deverão ser remetidas à primeira instância; nos demais casos, os recursos serão decididos pela Corte Especial do STJ.
Em sede de benefício de prerrogativa de função cabe a interpretação restrita.
As prerrogativas não são privilégios.
São atributos do órgão ou do agente público, inerentes ao cargo ou à função que desempenha na estrutura da organização administrativa, como revelou Hely Lopes Meirelles(Justitia, 123:188, n. 17). As prerrogativas dizem respeito ao cargo enquanto as garantias, por outro lado, são da pessoa, do órgão, do oficio, da instituição.
Afinal, como se tem das lições de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito), as normas de ordem pública têm aplicação restrita.
Não cabe falar para o caso em analogia que se entende como procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante. Como lecionou Norberto Bobbio (Teoria do Ordenamento Jurídico), há na analogia uma tendência do ordenamento jurídico a expandir-se.
Na analogia é preciso que entre os dois casos exista não uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, de forma que haja uma qualidade comum a ambos.
Na analogia há a criação de uma nova norma jurídica; na interpretação extensiva o efeito é da extensão de uma norma para casos não previstos por esta.
O intérprete deve eliminar a amplitude das palavras nessa hipótese constitucional.
Busca-se com tal entendimento uma norma de decisão. Uma norma jurídica adquire verdadeira normatividade quando com a “medida de ordenação” nela contida se decide um caso jurídico, ou se, quando o processo de concretização, já relatado, se completa através de sua aplicação ao caso jurídico a decidir mediante:
a) a criação de uma disciplina regulamentadora(concretização legislativa, regulamentar);
b) através de uma sentença, decisão judicial(concretização judicial);
c) através da prática de atos individuais pelas autoridades(concretização administrativa).
Em qualquer dos casos, uma norma jurídica que era potencialmente normativa ganha uma normatividade atual e imediata através de sua passagem a norma de decisão que regula concreta e vinculativamente o caso carecido de solução normativa.
Num Estado de direito democrático, o trabalho metódico de concretização é um trabalho normativamente orientado, como ensinou Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 1.185).
O jurista concretizador deve tralhar a partir do texto da norma, editado pela autoridade democrática e juridicamente legitimadas pela ordem constitucional. A norma de decisão, que representa a medida de ordenação imediata e concretamente aplicável a um problema não é um uma grandeza autônoma, independente da norma jurídica, nem uma decisão voluntarista do sujeito da concretização; deve, sim, reconduzir-se sempre à norma jurídica geral.
A distinção positiva das funções concretizadoras destes vários agentes depende da própria constituição. O que quis a Constituição? Impedir um tratamento privilegiado dos seus órgãos em detrimento do princípio da igualdade e da República, que um princípio democrático qualificado.
Por ilícitos cometidos fora do cargo e fora de sua função o governador deve ser julgado em primeira instância, que é o foro de competência para julgamento de todos os cidadãos, independente do cargo que exerça.
A República não aceita a diversidade de leis aplicáveis a casos substancialmente iguais, as jurisdições especiais.