Reforma trabalhista afetou os caminhoneiros, diz o MPT
O Ministério Público do Trabalho (MPT) entende que as condições de trabalho dos transportadores de carga “acabaram por fazer eclodir os sintomas do movimento dos caminhoneiros”.
Em nota pública sobre a crise no setor de cargas rodoviárias, o MPT trata da precarização das relações de trabalho e afirma que o segmento foi o “que primeiro sentiu os impactos da reforma trabalhista”.
Eis a íntegra da manifestação assinada por Luiz Eduardo Guimarães Bojart, procurador-geral do Trabalho em exercício.
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NOTA DO MPT À SOCIEDADE BRASILEIRA SOBRE A CRISE NO SETOR DE CARGAS RODOVIÁRIAS
Desde a última semana o Ministério Público do Trabalho está acompanhando o movimento que ocupou estradas e paralisou o transporte rodoviário de cargas em todo o país.
Trata-se de movimento de contornos diferenciados e que ocorre em momento muito sensível, pois entrelaça questões logísticas, políticas comerciais e fiscais.
Não obstante o impreciso conteúdo das reivindicações apontar para temas distintos da pauta trabalhista convencional, a insatisfação que lhes causou demonstra as consequências, previsíveis, da precarização das condições de trabalho do segmento que primeiro sentiu os impactos da reforma trabalhista.
A Constituição da Organização Internacional do Trabalho – OIT, desde 1919, condensando a preocupação de líderes interessados na prosperidade econômica, reconhece a existência de condições de trabalho que implicam miséria e privações, alertando para os riscos do descontentamento que “põe em perigo a paz e a harmonia universais”
Com efeito, para as relações de trabalho que envolvem motoristas, a reforma trabalhista chegou antes, com as alterações promovidas pela Lei nº 11.442/2007.
Tal marco normativo representou a transformação de milhares de trabalhadores, outrora empregados, num enorme contingente de autônomos e agregados, muito embora suas atividades continuem subordinadas a corporações econômicas de transporte, dos quais dependem econômica e logisticamente. E assim, os trabalhadores ficaram à mingua do sistema de proteção do emprego, tal como determina o Texto Constitucional.
O reduzido rendimento e a necessidade de suportar individualmente os custos e os riscos da atividade estimulam a prática de jornadas sobre-humanas, sustentadas, em grande parte, segundo apontam pesquisas de campo, pelo consumo de drogas que mantém os condutores, na condição de empreendedores endividados, acordados por longos períodos.
A situação das jornadas extenuantes, pondo em risco o trânsito e a vida do motorista e dos demais condutores de veículos, agravou-se drasticamente a partir da Lei nº 13.103/2015.
Neste contexto, o MPT, incumbido constitucionalmente da defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis relacionados ao mundo do trabalho, tem centrado seus esforços nas causas reais dessa situação de espoliação, as quais, em última análise, acabaram por fazer eclodir os sintomas do movimento dos caminhoneiros.
Assim, o MPT vem participando, democraticamente, das discussões legislativas e apontando o disparate e a inconsequência das alterações normativas (Lei nº 11.442/2007 e Lei nº 13.103/2015) que transformaram o setor e a atividade numa luta insana pela sobrevivência, por meio de garantia de um rendimento mínimo que possibilite a satisfação das necessidades básicas do ser humano.
O quadro é grave e preocupante, pelas dimensões e pela persistência, mas não se pode dizer que seja surpreendente na essência e em seus contornos, dada à degradação das condições de trabalho.
A ampla possibilidade de terceirização no setor, com diferentes roupagens e artifícios que pretendem camuflar a situação de efetiva subordinação e dependência dos trabalhadores em relação às corporações que organizam e dirigem a atividade, propicia a desorganização dos trabalhadores e do movimento, fato que, conforme vem sendo observado, dificulta enormemente o processo de negociação para a pacificação do conflito.
Há um clima compreensível de insatisfação, externado em manifestações com pauta incerta e inconstante, com coordenação diluída e interlocutores imprecisos.
No seu componente legítimo, esse modo peculiar de organização do movimento representa um grande desafio à negociação de interesses de modo a que sejam assegurados os direitos mínimos aos trabalhadores e restabelecida a ordem social.
Todavia, a situação dos caminhoneiros é a ponta pequena de um grande iceberg descortinado pela recente Reforma Trabalhista, que já se espalha em outras categorias, incentivando o individualismo desprotegido que, sob o nome de empreendedorismo, fragiliza a organização sindical, duramente atingida pela eliminação de sua principal fonte de financiamento, sem qualquer reposição, e restringe o acesso à Justiça do Trabalho, na forma de ameaças processuais e econômicas.
A liberdade sindical e a resistência coletiva dos trabalhadores têm na greve um direito fundamental, com previsão constitucional, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e os interesses que devam por meio dela defender. O MPT está especialmente vocacionado à defesa e à preservação desse direito, quando exercido de forma legítimo, nos termos e nos limites definidos na ordem jurídica.
Por certo, a extraordinária fragmentação do setor, com a diluição da representação da categoria e da própria percepção do coletivo dificultam a atuação e a negociação, criando obstáculos visíveis à solução do conflito. Esse também é um resultado previsível das recentes alterações legislativas que escancaram o preconceito contra os sindicatos.
O Ministério Público do Trabalho reitera seu compromisso com a tutela dos direitos de todos os trabalhadores brasileiros, notadamente dos motoristas de cargas, independentemente da forma de contratação, e com a defesa da ordem jurídica e do interesse público.
Finalmente, considerando a avaliação de que, no cenário de precarização das relações trabalhistas instaurado pelas recentes reformas, há o risco de que tais formas de conflitos se tornem comuns, atingindo outros segmentos com potencial de gerar caos social, o MPT anuncia a criação de instância, no âmbito da Procuradoria-Geral do Trabalho, destinada a acompanhar, mediar e dar respostas institucionais a crises sociais decorrentes da precarização das relações de trabalho.
O MPT, com sua vasta experiência em negociações sociais complexas, está a postos para contribuir na construção de consensos e entendimentos possíveis que restabeleçam a paz e a harmonia.
Firme na sua independência e autonomia, pautado pelos valores de uma ordem social construída a partir do primado do trabalho, o MPT está aberto e propõe-se a atuar como mediador da grave crise.
Também está atento para a adoção de medidas, no âmbito de sua atribuição, relativas à investigação e à cobrança de responsabilidades por condutas ilegais, inclusive o locaute, prática considerada ilícita pela Lei de Greve (Lei n. 7.783/89), bem como de atos atentatórios aos direitos sociais e individuais indisponíveis.
Sem ignorar as origens do caos que castiga a sociedade como um todo, o MPT propõe-se, uma vez mais, a ser parte da solução.
LUIZ EDUARDO GUIMARÃES BOJART
Procurador-Geral do Trabalho em exercício