Não há instituição mais opaca que o Ministério Público, diz Claudio Abramo
O Blog recebeu a mensagem a seguir de Claudio Weber Abramo, ex-diretor executivo da ONG Transparência Brasil, a propósito de post com manifestação de Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito a Corrupção. Abramo comenta o processo eleitoral no Ministério Público de São Paulo, as escolhas de titulares dos MPs no país, e questiona a falta de informações sobre as atividades de interesse público que exercem.
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Caro Fred:
Leio nota de Roberto Livianu acerca de proposição apresentada à Assembleia Legislativa de SP pelo deputado Fernando Capez (PSDB), relativa ao modo de escolha do procurador-geral de justiça do estado.
Gostaria de fazer uma observação geral sobre a escolha dos titulares dos Ministérios Públicos da União e dos estados.
Esclareço que uso a nota de Livianu apenas como “gancho”, não visando a sua pessoa. Livianu é um valoroso batalhador no combate à corrupção e merece respeito.
Tornou-se praxe no ambiente dos MPs a noção de que os titulares dessas instituições devem ser escolhidos com base em eleição interna corporis. Afirma-se que isso seria “democrático”.
O texto de Livianu usa desse argumento para defender a mudança no regramento constitucional do estado de SP no sentido de permitir que qualquer promotor se candidate à função.
Pois bem: por que imaginar que a escolha do dirigente de um órgão público deva ser realizada por eleição (não importa quem possa ser candidato)? O que isso tem de verdadeiramente democrático?
A defesa de tal mecanismo contrasta a eleição por pares com a escolha realizada pelo governador do estado, sujeita a confirmação da Assembleia Legislativa. Argumenta-se (ou se argumentava, dado que a regra da eleição foi há tempos adotada em todos os estados e na União) que uma tal nomeação sujeitaria o titular do MP a deveres de fidelidade ante ao governador que o nomeou, para prejuízo do exercício das funções da instituição.
Tal argumento, contudo, é todo falacioso. Vejamos por que:
1) A própria palavra “democracia” e seus derivados, aplicados à situação, passa ao largo do fato de que não se trata de uma eleição que consulte a população do estado, mas é restrita à corporação. A eleição corporativa nada mais é do que isso: corporativa. Nada tem a ver com o interesse público, mas com o interesse dos promotores. É evidente que a eleição do procurador-geral se dá em torno dos interesses corporativos. E, em regra, interesses corporativos são prejudiciais ao interesse público. São, portanto, antidemocráticos, em direta contraposição ao que os membros do MP afirmam a respeito de si próprios.
Parece um mistério que a eleição dos procuradores-gerais pelos próprios promotores no mínimo deixe de despertar a atenção, quando não indignação, pois serve apenas aos interesses destes; obviamente, aquilo que os candidatos ao cargo usam para seduzir seus eleitores corporativos durante suas campanhas eleitorais são (ainda mais) privilégios, benesses materiais e funcionais, assuntos de carreira e assim por diante.
2) Em direto desmentido ao principal argumento dos defensores da tal eleição, os Ministérios Públicos estaduais são aparelhados pelos respectivos governadores. Como Mario Sergio Conti escreveu outro dia, não há um só cargo no MP de São Paulo, do porteiro ao procurador-geral, que não seja aparelhado pelo PSDB. Pode haver grupos de interesse distintos, mas no frigir dos ovos os ocupantes de cargos comissionados são, todos, tucanos. É claro que tal comportamento não é apanágio desse partido e desse estado. Qualquer partido que exercite o poder durante algum tempo faz o mesmo. [Doravante, mencionarei o MP de São Paulo, mas o eventual leitor pode substituir o estado por qualquer outro. ]
É óbvia a inércia do MP em investigar casos de envolvimento abundantemente provável de dirigentes públicos estaduais em casos de corrupção. O mesmo se pode dizer de quase todo MP estadual.
3) Denúncias de corrupção que são encaminhadas aos membros do MP são meramente engavetadas. Sequer conhecemos que tipo de denúncia chega à instituição porque esta renuncia à obrigação, que em outras circunstâncias seria auto-evidente, de forçar os promotores a fazer registro formal dessas denúncias (como de quaisquer outras).
Muitos anos atrás a ONG Transparência Brasil (que dirigi por vários anos) levou à procuradoria-geral do MP de SP proposta de se proceder a tal registro. Sequer nos responderam. Ainda que, por motivos óbvios, os dados de um tal registro não devessem ser publicados, constituiriam instrumento importante de gestão, além de proporcionar análises estatísticas e de outro tipo (estas, sim, publicadas) sobre o conjunto. Por exemplo, seria muitíssimo interessante comparar os números agregados de denúncias relativas a prefeitos e secretários municipais com a distribuição partidária desses mesmos prefeitos.
A omissão acontece porque, dado que são eleitos corporativamente, os procuradores-gerais eximem-se de submeter a instituição a obrigações administrativas. Alegam “independência funcional” individual dos promotores (evidentemente necessária para evitar que haja interferências em suas decisões) para evitar impor alguma disciplina à estrutura.
Sugere-se ao possível leitor que imagine um candidato a procurador-geral que declare, em sua campanha corporativo-eleitoral, que obrigará seus eleitores a obedecer a um rol de deveres administrativos ausentes nessas repartições. Bater ponto, por exemplo. Impor o registro organizado de viagens (pelas quais promotores recebem diárias nababescas) em cadastro centralizado e aberto ao público. Por que, precisamente, viajam? E assim por diante.
4) O motivo pelo qual o que acontece no MP passa debaixo do radar — incluindo-se primordialmente a balela “democrática” — vem de sua opacidade. Não há instituição pública no Brasil cuja opacidade se compare à dos Ministérios Públicos. Além de dados financeiros agregados, nada se conhece sobre a eficiência dessas instituições. Ignoram-se dados essenciais, como por exemplo (entre centenas de outros) a porcentagem de ações movidas por MPs que resultem em condenação dos réus, ainda que em primeira instância. Para isso seria necessário registrar sistematicamente (e publicar) o desempenho de cada promotor — algo que, nesse meio, é anátema.
Observe-se que, no passado recente, esse tipo de tema era também anátema no Judiciário. Ao longo de poucos anos, por força da autoridade do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), todos os tribunais do país passaram a produzir estatísticas cada vez mais detalhadas a respeito de seu desempenho.
Anos atrás, o Conselho Nacional do Ministério Público tentou obter estatísticas dos Ministérios Públicos federais e estaduais. O relatório resultante tinha três páginas, todas elas dedicadas a declarar que os MPs haviam se recusado a enviar dados. Simplesmente assim. E o assunto ficou por isso mesmo. Esses órgãos meramente se recusam a prestar contas de sua atividade.
5) Durante muitos anos era costumeiro afirmar-se que a imprensa brasileira devia ao público um olhar crítico sobre o Judiciário. Isso mudou muito. Bastante devido à ação do CNJ, mas também a profissionais como o titular deste blog, cresceu muito o conhecimento sobre o Judiciário e a crítica que se possa fazer com base nisso.
Hoje, a imprensa é devedora de mais atenção sobre os Ministérios Públicos.
Claudio Weber Abramo