Sigilo dos advogados no caso Bolsonaro

Frederico Vasconcelos

Sob o título “Segredos entre o advogado e o cliente”, o artigo a seguir é de atoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.

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I – O FATO

O advogado Zanone Manuel de Oliveira Júnior, que defende Adelio Bispo de Oliveira, autor do atentado a faca contra Jair Bolsonaro, afirmou no dia 8 de setembro do corrente ano, que foi contratado por uma pessoa do município de Montes Claros (MG) que pediu sigilo sobre sua identidade. O agressor vivia na cidade do Norte de Minas.

Segundo Zanone, até o momento foram pagos apenas os deslocamentos e custos da atuação da defesa em Juiz de Fora (MG), onde Bolsonaro foi esfaqueado por Oliveira.

Oliveira e familiares aparentemente não possuem recursos para arcar com o custo de advogados. Além de Zanone, a defesa de Oliveira é constituída por outros três advogados: Pedro Augusto de Lima Felipe e Possa, Marcelo Manoel da Costa e Fernando Costa Oliveira Magalhães.

II – A INVIOLABILIDADE PROFISSIONAL DO ADVOGADO E O SIGILO ENTRE ELE E O CLIENTE

A teor do artigo 133 da Constituição Federal, a advocacia é uma garantia constitucional, na medida em que se prevê a indispensabilidade do advogado na Administração da Justiça. Para tanto, são garantidos ao advogado, no seu mister, a inviolabilidade profissional e o sigilo dos dados do cliente.

O advogado é um profissional habilitado para o exercício do ius postulandi.

Para José Afonso da Silva (“Direito Constitucional Positivo”, 5ª edição, pág. 502), à luz do que disse Eduardo Couture (Los mandamientos del abogdo) a advocacia não é apenas uma profissão, é também um múnus e uma árdua fatiga posta a serviço da justiça”.

Em verdade, a advocacia não é apenas um pressuposto na formação do Poder Judiciário.

É também necessário ao seu funcionamento.

Fala-se que a inviolabilidade profissional é um direito que afiança ao advogado a possibilidade de trabalhar com maior segurança, uma vez que lhe são asseguradas a inviolabilidadede seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de suas correspondências e comunicações. Trata-se de uma verdadeira garantia que é dada à sociedade que se vale dos serviços advocatícios do que uma garantia do advogado propriamente dito.

A inviolabilidade abrange a imunidade profissional, a proteção ao sigilo profissional e a proteção aos meios de trabalho.

Mas como explica José Afonso da Silva (obra citada, pág. 504), a inviolabilidade do advogado, prevista no artigo 133, não é absoluta. Ela só o ampara com relação a seus atos e manifestações do exercício da profissão e, assim mesmo, nos termos da lei.

Disse ele que “a inviolabilidade não é um privilégio profissional, é uma proteção do cliente que confia a ele documentos e confissões da esfera íntima, de natureza conflitiva e não raro objeto de reivindicação e até de agressiva cobiça alheia, que precisam ser protegidosde natureza qualificada”.

A imunidade profissional, prevista no artigo 7º, parágrafo segundo, do Estatuto da Advocacia, significa a liberdade de expressão do advogado.

José Roberto Batochio (“A inviolabilidade do advogado em face da Constituição de 1988”, 688:401) disse que “a natureza eminentemente conflitiva da atividade do advogado frequentemente o coloca diante de situações que o obrigam a expender argumentos à primeira vista ofensivos, ou eventualmente adotar conduta insurgente”.

Com exceção ao desacato, a imunidade já estava prevista no artigo 142, II, do Código Penal quando se preceitua que não constituem injúria ou difamação punível “a ofensa irrogada em juízo, na discussão de causa, pela parte ou por seu procurador”. Por certo, essa imunidade prevista no Estatuto não se limita às ofensas irrogadas em juízo, mas em qualquer órgão da Administração Pública, e em relação a qualquer autoridade pública, judicial ou extrajudicial.

Aliás, por não dispor de poder de punir contra o advogado é vedado ao magistrado excluir este do recinto judiciário, inclusive de audiências e sessões ou censurar as manifestaçõesescritas no processo, por ele consideradas ofensivas, estando derrogadas as normas legais que as admitiam.

Por sua vez, o sigilo profissional é um dever deontológico que está relacionado com a ética de determinada profissão, abrangendo a obrigação de manter segredo sobre tudo o que o profissional venha a tomar conhecimento.

Como bem expressa Paulo Lôbo (“Comentários ao Estatuto da Advocacia”, 4ª edição, pág. 64), o sigilo profissional é, ao mesmo tempo, direito e dever, ostentando natureza de ordem pública. Como tal tem natureza de ofício privado (múnus), estabelecido no interesse geral como pressuposto indispensável ao direito de defesa. Esse dever de sigilo profissional existe seja no serviço solicitado ou contratado, remunerado ou não remunerado, haja ou não representação judicial ou extrajudicial, tenha havido aceitação ou recusa do advogado.

É ainda Paulo Lôbo (obra citada, pág. 65) quem lembra que o dever de sigilo, imposto ética e legalmente ao advogado, não pode ser violado por sua livre vontade. É dever perpétuo,do qual nunca se libera, nem mesmo quando autorizado pelo cliente, salvo no caso de estado de necessidade para a defesa da dignidade ou dos direitos legítimos do próprio advogado, ou para conjurar perigo atual e iminente contra si ou contra outrem, ou, ainda, quando for acusado pelo próprio cliente.

Daí porque se entende cessado o dever de sigilo se o cliente comunica ao seu advogado a intenção de cometer um crime, porque está em jogo a garantia fundamental e indisponível à vida, prevista na Constituição. Aliás, deve o advogado promover meios para evitar que o crime seja cometido.

Decidiu o Conselho Federal da OAB(Rec. N. 174/SC/80, Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, 27 – 28: 193-9, set/dez. 1990, jan/abr. 1991) não poder o advogado prestar depoimentoou testemunhar contra o ex-constituinte sobre o que este lhe teria transmitido.

Mas esse segredo profissional limitar-se-á ao que lhe foi confiado pelo constituinte, mas sobre os fatos que, por outros meios, tenham chegado ao seu conhecimento, não prevaleceo sigilo (TJSP, AgI 18.143 – 1, Jurisprudência Brasileira, 123:233, RT 127/212).

O Superior Tribunal de Justiça já entendeu que o sigilo profissional, previsto no artigo 7º, inciso XIX, que acoberta o advogado, é relacionado “à qualidade de testemunha”, mas não quando o advogado é acusado em ação penal da prática de crime (RT 718/473).

O advogado pode e deve recusar-se a comparecer e depor sobre fatos conhecidos no exercício profissional, cuja revelação possa produzir dano a outrem (RTJ 88/847; RT 523/438; 531/401).

O artigo 26 do Código de Ética prescreve que o advogado deve guardar sigilo, “mesmo em depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu oficio, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou tenha sido advogado, mesmo que autorizado pelo constituinte”.

O advogado pode quebrar o sigilo profissional nos casos em que é atacado pelo próprio cliente, isso porque o advogado tem o direito de revelar “fatos e documentos”, nos limites de sua defesa para evitar que venha a correr o risco de responder por eventual ilícito cometido por seu cliente.

A tutela do sigilo e da recusa de depoimento alcança os pareceres jurídicos ofertados.

Porém inexiste o dever de sigilo profissional com relação a fatos notórios, fatos de conhecimento público, fatos já provados em juízo e a documentos autênticos ou autenticados.

Mister que se diga que a revelação de sigilo profissional configura infração disciplinar punível com a sanção de censura(artigo 36, I, do Estatuto), independente do fato de que se caracteriza crime de violação de sigilo profissional, punível nos termos do artigo 154 do Código Penal.

Anda a inviolabilidade do advogado alcança seus meios de atuação profissional, tais como seu escritório ou local de trabalho, seus arquivos, seus dados, sua correspondência e suas comunicações.

O que é local de trabalho? É qualquer um que o advogado possa utilizar-se para desenvolver seus trabalhos profissionais, incluindo sua residência, quando for o caso. Mesmo nos casos de serviços efetuados por rede de comunicação, tal sigilo não pode ser violado.

Entende-se que não deve haver interceptação telefônica do local de trabalho do advogado, ainda que autorizado pelo magistrado, por motivo de exercício profissional.
Ora, a hipótese prevista no artigo 5º, XII, da Constituição Federal(ser admitida, por ordem judicial, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal) aplica-se apenas à própria pessoa do advogado, por ilícitos penais, por ele cometidos, mas nunca em razão de sua atividade profissional.

Decidiu o Superior Tribunal de Justiça, nojulgamento do RO em MS 10.857/SP, 2000, que a proteção a inviolabilidade de comunicações telefônicas do advogado, “não consubstancia direito absoluto, cedendo passo quando presentes circunstâncias que denotem a existência de um interesse público superior,especificamente a fundada suspeita da prática de infração penal”.

Considera Cremilda Maria Ramos Ferreira (“Sigilo profissional na advocacia”, pág. 51) “que não pode o advogado reter documentos que lhe foram confiados para os subtrair às investigaçõesjudiciais, sob pena de proteger o delito e a impunidade”.

Em monografia intitulada “A inviolabilidade e o sigilo profissional do advogado”, Rosalina Leal de Oliveira, aduz:

“Investigações em escritórios de advocacia somente podem ser feitas com um mandado, devendo a diligência ser presidida por um juiz na presença do advogado investigado e de umrepresentante da Ordem dos Advogados.”

Jail Benides AzambujaAzambuja (“Busca e apreensão em escritórios de advocacia e interceptações telefônicas de conversas de advogados com clientes”, em palestra no Seminário Internacional “propostas para um novo modelo de persecução penal”, 2005) cita o doutrinadorSullivan (para demonstrar as hipóteses a que se aplica o privilégio:

O afirmado detentor do privilégio é ou irá tornar-se um cliente; (2) a pessoa para quem a comunicação é feita (a) é um advogado ou seu subordinado e (b) em conexão com a comunicaçãoestá agindo como advogado; (3) a comunicação está relacionada com um fato que está sendo informado (a) pelo cliente (b) sem a presença de estranhos (c) com o propósito de assegurar em primeiro lugar (i) uma opinião jurídica ou (ii) serviços jurídicos ou (iii)assistência em procedimentos legais e não (d) com o propósito de cometer um crime ou ilícito civil e (4) o privilégio foi invocado e não abdicado pelo cliente.

As exceções são as circunstâncias em que a atuação do advogado ultrapassa o âmbito da simples assistência jurídica, passando a atuar este como coautor ou partícipe de ações que visem um ilícito.

É claro e óbvio que a finalidade do privilégio é proteger a tutela do segredo e confiança entre o advogado e seu cliente, de modo que somente possa ser rompida essa proteção caso haja o que os norte-americanos chamam de “razoável relação” entre a o crime/fraude e a comunicação entre o advogado e o cliente. De qualquer forma, a parte que invoca um privilegio deve provar a ocorrência de seus elementos essenciais (Azambuja, 2005, p. 2).