Quando a insuficiência de provas foge à razoabilidade
O Conselho da Justiça Federal (CJF) arquivou em setembro deste ano procedimento instaurado para apurar condutas dos juízes Nery da Costa Júnior e Gilberto Rodrigues Jordan, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP-MS).
Costa Júnior e Jordan foram acusados de forjar uma força-tarefa em Ponta Porã (MS), em 2011, para beneficiar o Grupo Torlim com a liberação de bens apreendidos pela Justiça.
O procedimento no CJF foi iniciado para acompanhar sindicância no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que resultou em processo disciplinar arquivado em junho de 2015 “por insuficiência de provas”, segundo o voto da relatora.
O julgamento, na verdade, terminou com 7 votos pela condenação e 6 votos pela absolvição. Mas como a punição só poderia ser imposta por maioria absoluta, houve o arquivamento do processo.
Talvez esse tenha sido o caso mais emblemático da gestão do ministro Ricardo Lewandowski no CNJ, marcada pela demora no julgamento de processos disciplinares e por constantes divergências e discussões travadas com conselheiros.
Processo “pinçado”
Segundo o Ministério Público Federal, a força-tarefa foi criada sob a alegação de que havia atraso de processos criminais na 1ª Vara Federal de Ponta Porã. Porém, foi “pinçado” um processo da área cível, no qual Jordan sentenciou liberando bens do Grupo Torlim.
A investigação do CNJ apontava fortes indícios de que Nery Júnior e Gilberto Jordan usaram seus cargos para favorecer um frigorífico acusado de sonegação e crimes tributários estimados em R$ 184 milhões [valores da época].
O processo apurava se Costa Junior teria influenciado a presidência do tribunal a autorizar a tal força-tarefa. Os autos indicam que o magistrado é da região e tem relação de amizade com advogados do caso.
Deslocado para atuar na força-tarefa, Jordan foi acusado de analisar mais de 90 processos, mas decidiu apenas dois – um deles relativo ao grupo Torlim.
Segundo o conselheiro Gilberto Martins, buscando “desembaraçar os inúmeros bens imóveis e veículos sequestrados, os magistrados envolvidos engendraram a grande operação, chamada de ‘força-tarefa’, para atuar diretamente na Vara Federal de Ponta Porã”.
Martins votou pelo envio de cópia integral dos autos para a Corregedoria Nacional de Justiça, propondo sindicância sobre o suposto envolvimento dos juízes Luiz Stefanini e Roberto Haddad, na época presidente do TRF-3. Jordan era, então, juiz auxiliar da presidência do tribunal.
O caso Nery Júnior/Gilberto Jordan atravessou os mandatos de três corregedores nacionais de Justiça.
Processo arrastado
A investigação teve início em 2011, quando a ministra Eliana Calmon instaurou a sindicância. O processo disciplinar foi aberto na gestão do ministro Francisco Falcão.
Em setembro de 2013, por dez votos a quatro, os dois magistrados foram afastados provisoriamente do cargo. Dois meses depois, uma liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio determinou o retorno de ambos às atividades judicantes.
Em agosto de 2014, a conselheira Deborah Ciocci, juíza do TJ-SP, alegou problemas com a localização de testemunhas e pediu a prorrogação do processo.
Somente no dia 10 de março de 2015, a relatora apresentou seu voto de absolvição dos dois magistrados. Na mesma sessão, os conselheiros Gilberto Martins e Nancy Andrighi pediram vista regimental.
Pelo Regimento do CNJ, o presidente Lewandowski deveria ter retomado o julgamento na sessão de 24 de março, assim como deveria ter feito nas sessões de 7 de abril e 28 de abril daquele ano. Nesta última, o colegiado estava com a composição plena de seus membros, pois dois conselheiros completavam seus mandatos.
Somente na sessão de 12 de maio, com a composição incompleta, Lewandowski chamou o processo para julgamento.
Na sessão de 26 de maio, Gilberto Martins apresentou voto divergente da relatora, aplicando a pena de aposentadoria compulsória para os dois desembargadores. No meio do julgamento, a conselheira Deborah Ciocci, relatora, se retirou do plenário e o presidente suspendeu a sessão. A juíza justificou a retirada por problemas de saúde na família.
Na sessão de 9 de junho, a então corregedora Nancy Andrighi acompanhou a divergência e votou pela condenação de Nery Júnior e Jordan.
No dia 16 de junho, a votação foi suspensa, com pedido de vista, quando havia seis votos pela aposentadoria compulsória e três votos pelo arquivamento.
Finalmente, no dia 30 de junho de 2015, Lewandowski acompanhou a relatora e votou pela absolvição dos dois juízes. Entendeu que não ficou comprovado dolo dos magistrados.
Lewandowski proclamou o resultado: 6 votos pela absolvição e 7 votos pela condenação. Como não houve maioria absoluta para a condenação, determinou o arquivamento do processo.
Debate acalorado
Na sessão de 4 de agosto, Lewandowski discordou de questão levantada por Gilberto Martins. Havia dúvidas sobre quem deveria assinar o acórdão do julgamento.
Embora o quórum necessário para a aplicação da pena dos dois juízes não tivesse sido alcançado, a maioria do plenário votara pela procedência do pedido.
Como a maioria é determinante para a relatoria do acórdão, Martins entendeu que os autos deveriam ter sido encaminhados para o seu gabinete, como relator do acórdão, como prevê o Regimento Interno.
Martins pediu, então, correção na ata.
Na certidão, constou que o conselho determinara o arquivamento do processo, nos termos do voto da relatora Deborah Ciocci. Ele entendeu que deveria ter sido registrado que a maioria decidira pela procedência do pedido, e que a pena deixou de ser aplicada porque não houve maioria absoluta.
A maioria também decidira que os autos deveriam ser enviados à corregedoria, para eventuais providências em relação a outros membros do TRF-3.
Nancy Andrighi havia requerido cópia de processo disciplinar, para apuração do envolvimento do juiz Luiz Stefanini “no direcionamento de uma força-tarefa com a finalidade de favorecer o Grupo Torlim”.
A relatora Deborah Ciocci registrara em seu voto que Stefanini “criou fato grave inexistente, de modo a incitar ordem de intervenção na 1ª Vara Federal de Ponta Porã/MS, emanada pela presidência do Tribunal Regional Federal da 3ª Região”.
“Não há que falar em retificação da ata”, sentenciou o presidente Lewandowski, ao anunciar que acolhera a opinião do secretário-geral.
Martins insistiu que o plenário teria que decidir como ficaria a relatoria do voto vencedor. Argumentou que “vamos ter voto vencedor da minoria”…
“Não pode prevalecer um voto de minoria. E eu gostaria de fazer juntada da minha decisão”, disse Martins.
Ocorreu, então, o seguinte diálogo:
Lewandowski: “A matéria está decidida nos termos regimentais. E, como se sabe, no que tange a questões de distribuições, em tese, as decisões da presidência são irrecorríveis. Eu indefiro o pedido de Vossa Excelência.”
Martins: “O plenário tem que decidir…”
Lewandowski: “Vossa Excelência é um membro do Conselho e eu presido o Conselho. Eu indefiro o pedido de Vossa Excelência”.
Martins: “Mas o Conselho é soberano…”
Lewandowski: “Quem faz o encaminhamento dos trabalhos é o presidente. Está indeferido.”
Durante a tramitação do processo no CNJ, os advogados dos dois magistrados alegaram “perseguição pública e notória” contra Nery Júnior –“réu escolhido a dedo”– e que as acusações contra seus clientes eram “insinuação maldosa” e uma “fantasia” do MPF.
Segundo o advogado Carlos Marques, que defendeu os magistrados no CNJ, “prevaleceu no julgamento o que foi colhido nos autos pela relatora”.
“Para se falar em condenação, o julgamento teria que envolver vários membros do TRF-3 comprometidos com aquela demanda [a formação da força-tarefa], teria que ser um complô, o que foge à razoabilidade”, disse o advogado.
Inquérito inconcluso
O Conselho da Justiça Federal julgou e arquivou, por unanimidade, o pedido de providências no último dia 24 de setembro, em sessão presidida pelo ministro João Otávio de Noronha. A presidente do TRF-3, Therezinha Cazerta, declarou suspeição.
Em seu voto, o corregedor-geral da Justiça Federal, ministro Raul Araújo, entendeu que seu antecessor, ministro Mauro Campbell Marques, havia se equivocado ao determinar a continuidade do procedimento. Segundo Marques, o arquivamento do procedimento no CNJ teria ocorrido sem exame de mérito de eventual infração disciplinar.
Araújo considerou que não cabe prosseguimento, sem que se tenha notícia de qualquer fato novo.
“Não há dúvida de que os fatos investigados no âmbito do CNJ são extremamente graves e que, em um primeiro momento, mereciam –como de fato mereceram– efetiva apuração”, afirmou o corregedor-geral.
Araújo registrou que a representação no CNJ não chegou a ser redirecionada para a corregedoria-geral da Justiça Federal. “O resultado final do processo disciplinar levou à absolvição dos dois acusados, por insuficiência de provas”, com o consequente arquivamento, votou.
“Este Conselho da Justiça Federal não tem função revisora dos processos disciplinares realizados pelo Conselho Nacional de Justiça”, afirmou o corregedor-geral.
Araújo registrou outro óbice intransponível: a prescrição da pretensão punitiva, “fulminada” desde o final de 2016.
O relator concluiu: “Cabe registrar que os fatos aqui narrados foram, identicamente, levados ao conhecimento da Procuradoria-Geral da República, a qual representou pela abertura de inquérito judicial junto ao Superior Tribunal de Justiça. O inquérito foi instaurado ainda no ano de 2012, sob o número 816/DF, mas não se tem notícia de sua conclusão, pois até aqui não houve apresentação de denúncia perante a Corte Especial do STJ”.