Nomeações no Judiciário e pressão externa de usurpadores do poder

Sob o título “Ato Jurídico Perfeito e Juiz Natural”, o artigo a seguir é de autoria de Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. O autor é Doutor em Filosofia da Universidade de São Paulo.

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Haverá algum assunto que diga respeito apenas ao foro interno do Poder Judiciário?

A Constituição de 1988, que completou trinta anos, em outubro, impulsionou mudanças substanciais na crença de que haveria uma esfera administrativa no interior desse
Poder fechada ao escrutínio da sociedade.

O Princípio da Moralidade Administrativa, antes de tudo, impôs a construção e a concertação de mecanismos de fiscalização e controle que ultrapassaram as tradicionais estruturas da Corregedorias dos Tribunais, antes soberanas, absolutamente.

A criação do Conselho Nacional de Justiça, pela Emenda Constitucional 45/2004, após o longo debate sobre a pertinência de um controle externo do Poder Judiciário, veio a consolidar a tendência de centralização da organização administrativa do Poder Judiciário brasileiro, e, como corolário, a da necessidade de fiscalização dos atos que, até seu advento, os Tribunais consideravam soberanos, no âmbito de sua atuação.

O próprio Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência, no sentido de o controle dos atos do Conselho Nacional de Justiça se mostrar excepcionalíssimo, mormente evitando interferir no sistema de freios e contrapesos estabelecido pelo constituinte.

É a sociedade brasileira a protagonista da cena política e jurídica. A Constituição o estabelece em fórmula lapidar: todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, por representantes eleitos. É a consagração do princípio do Estado democrático de Direito, que obriga a Administração Pública, em qualquer de suas esferas e em qualquer de seus âmbitos, a se submeter ao controle da sociedade, por meio dos órgãos incumbidos pelo povo, por meio de seus representantes legítimos, a realizar atos de fiscalização.

O Princípio da Moralidade Administrativa garante à sociedade que qualquer ato da Administração será impessoal e público. Não será, portanto, dirigido a beneficiar determinadas pessoas, como no passado, em que o princípio do parentesco e da “amizade” – na verdade cumplicidade – permitiam que nomeações fossem feitas ao alvedrio do administrador, contrariando normas estabelecidas. Muito menos que esses atos arbitrários fossem cometidos em segredo.

A questão da nomeação para cargos e funções públicas, com efeito, segue critérios rígidos, que não podem ser contornados. A Constituição, a par da Moralidade, exige que requisitos certos sejam seguidos, sob pena de se contrariar não apenas a Lei, mas sobretudo o interesse da sociedade, que é o de atenção objetiva aos valores republicanos e democráticos do império da lei.

A questão da promoção, no interior das carreiras públicas, é apenas consequência do que aqui se afirmou a respeito da nomeação. A promoção segue as regras da lei em vigor, para evitar que se privilegie ou se prejudique alguém, apenas porque o administrador ou o órgão da Administração do momento têm suas preferências. A promoção e as listas de antiguidade e merecimento seguem a lei (legalidade), e são conformadas pelos critérios da moralidade, da impessoalidade e da publicidade.

Como isso se dá no Poder Judiciário? Haverá regras excepcionais, que permitem que esses princípios sejam contrariados? A sociedade pode estar alheia aos critérios
estabelecidos e ao modo como age o Judiciário, nas nomeações, promoções e fixação de listas de antiguidade e merecimento?

É evidente que não. No Judiciário, as regras são ainda mais rígidas. Enfim, está em jogo a capacidade de julgar, que um espírito pioneiro considerava terrível entre os homens. Julgar as relações sociais, qualificadas pelo direito. Com imparcialidade, impessoalidade, abstração de interesses familiares ou de afinidade, busca de atender plenamente aos critérios da Lei, na exata compreensão e no fiel cumprimento da Constituição. É isso que se pode chamar fazer Justiça, de modo autêntico. E é para isso que o Judiciário foi criado, para evitar o arbítrio do poder, seu abuso por administradores descomprometidos com o que determinam princípios e regras de sua ação.

As regras e princípios que regem a função dos juízes (desembargadores e ministros) são garantias da sociedade. Garantia dos jurisdicionados de serem julgados pelo órgão jurisdicional certo, e não por julgadores escolhidos segundo o arbítrio interno de tribunais, ou a pressão externa de usurpadores do poder.

Assim é que um princípio basilar da jurisdição, ou seja, da função que exercem juízes e juízas, é o princípio do juiz natural.

Abra o leitor leigo os dicionários e as enciclopédias e verá que esse princípio não é apenas tema de direito, mas da história das conquistas da humanidade em direção a uma ordem jurídico-politica justa e legitima.

O conceito de tribunal de exceção relaciona-se intimamente com a ideia de que o cidadão, ao ser julgado, estará diante do juiz que foi nomeado e promovido na forma da lei, de modo impessoal, em procedimento público, observada a moralidade. E não diante de um julgador escolhido contra a lei, pinçado segundo preferências pessoais de
um órgão, seja ele qual for, que aplica regras que também escolhe, sem observar o ordenamento jurídico.

Refiro, aqui, uma questão a que, aparentemente, a cidadania não tem prestado atenção. Mormente o órgão porta-voz dessa cidadania, que é a imprensa.

Importa à sociedade a nomeação e a promoção de seus juízes, porque a sociedade quer que os julgamentos sejam feitos pelos juízes postos em seus cargos e funções de modo regular, jurídico, propriamente.

Toda vez que essa ordem é burlada, é a sociedade que fica ameaçada, seja por que critério for, seja qual for a justificativa – anticonstitucional, sempre – dessa irregularidade.

Há muitas irregularidades passíveis de ocorrer. Elas dirão sempre respeito a uma desobediência ao artigo 37 da Constituição Federal.

Uma dessas irregularidades pode ser determinada pela contrariedade ao Ato Jurídico Perfeito.

Pense o leitor que assinou um contrato em 2006. Nesse ano, a lei lhe assegurava que, por meio desse contrato, tornava-se proprietário de uma casa, mediante o pagamento de um determinado valor, e o registro público da compra. Assinado o contrato, pago o valor, e registrado o contrato no órgão competente, o leitor se tornava proprietário da casa. Entretanto, em 2009, três anos depois, após haver o leitor adquirido a propriedade regularmente, a lei muda e diz que aquela propriedade não é mais sua, mas de outro.

Ora, o Princípio do Ato Jurídico Perfeito protege o nosso proprietário, que adquiriu a casa em 2006. A mudança de uma regra não afeta os atos consolidados antes da vigência dessa regra. E isso para proteger as pessoas de arbitrariedades, exigindo que haja segurança nas relações jurídicas. À aquisição da propriedade em 2006 aplica-se a regra de 2006.

A regra de 2009 não pode retroagir a 2006 para desfazer algo que está perfeito e acabado. Não pode querer beneficiar assim, contra a Constituição, o amigo daquele que pretende essa aplicação monstruosa.

Isso se aplica também na Administração Pública. Se alguém foi promovido e classificado em 2006, não pode perder seja a promoção seja a classificação, consolidada em 2006, por causa da mudança de uma regra havida em 2009.

Permitir que isso ocorra é grave e abala a ordem jurídica, mormente se ocorre no interior do Judiciário, desfazendo o elo de confiança entre jurisdição e jurisdicionados, entre justiça e cidadania.

Toda vez que isso ocorre, uma nuvem cinzenta se instala sobre a Administração. Se essa nuvem está sobre o Judiciário brasileiro, é fato grave, que precisa ser corrigido a tempo.

Não são apenas juízes e juízas que serão prejudicados por uma inconstitucionalidade, mas a sociedade como um todo. Sobretudo o próprio Poder Judiciário, que foi criado para cumprir e fazer cumprir a Constituição e a Lei, e nunca para as contrariar.

Cabe ao Judiciário impedir que se estabeleça um atentado à Constituição. À imprensa inteirar-se do que ocorre e informar, pois é povo detém o poder, e precisa ser informado das arbitrariedades que o impedem de exercer seus direitos, seu controle, seu acesso a uma Justiça verdadeiramente legítima.