Eventos de juízes abrem espaço para turismo e lobbies

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, prometeu maior presença do Judiciário no cenário internacional durante a sua gestão. Ele levou seis assessores para um encontro de juízes na Argentina, em novembro.

O STF pagou o total de R$ 32,6 mil em diárias a juízes auxiliares e servidores que acompanharam Toffoli no final de semana em Buenos Aires. A caravana viajou em avião da Força Aérea Brasileira. [veja aqui]

Levantamento realizado pela Folha sugere que eventos acadêmicos de magistrados podem disfarçar o turismo, encobrir lobbies e ser um negócio lucrativo para organizadores e patrocinadores.

Quando presidiu o Tribunal Superior Eleitoral, Toffoli promoveu conferência internacional num hotel flutuante de luxo no Amazonas. Por conta do erário, representantes de 12 países e 25 pessoas do TSE cruzaram o rio Negro, durante um final de semana.[veja aqui]

Em 1998, Mario Garnero, do grupo Brasilinvest, foi anfitrião de uma caravana de magistrados à Argentina, como convidados do Jurisul (Instituto Interamericano de Estudos Jurídicos sobre o Mercosul), uma entidade pouco conhecida e criada pelo empresário.

Na época, Garnero tinha uma condenação em ação penal, anulada pelo STF no ano seguinte. “Você não vai perguntar se alguém eventualmente tem processo”, disse o então desembargador Ricardo Lewandowski, do TJ-SP, sócio fundador do Jurisul.

O ministro Edson Vidigal, relator de uma ação cível contra Garnero no Superior Tribunal de Justiça, viajou com a mulher. Vidigal disse que só soube quem promovia o encontro quando Garnero discursou.

A Universidade San Martín, de Buenos Aires, atestou que custeou os seminários, junto com advogados e o Jurisul. “Não consta que eu tenha algum processo naquele país”, Garnero afirmou, na época.

O Conselho Nacional de Praticagem (Conapra) realizou seminário sobre direito marítimo num hotel de luxo, em Búzios (RJ). Reuniu nove ministros do STJ e três do STF. Luiz Fux abriu o evento. Seu filho, o advogado Rodrigo Fux, defendeu os interesses da Conapra.[veja aqui]

Há cerca de 20 anos, o Memory Centro de Memória Jurídica, no Rio de Janeiro –antigo Memory Centro de Memória Empresarial– organiza discretos encontros de juízes, patrocinados por empresas, como a Souza Cruz.

O Memory informa em seu site que “recebe apoio cultural do governo, de entidades e empresas, sob a forma de cessão de palestrantes e inscrição de participantes, que dão o necessário suporte aos custos de realização dos projetos”.

A parceria entre a FGV Projetos, uma unidade de assessoria da Fundação Getúlio Vargas e o IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público, do qual o ministro Gilmar Mendes é sócio, deu maior visibilidade a palestras de juristas e ministros no país e no exterior.

Há crises de identidade nessa atuação do ministro, além de ruídos e incompatibilidades no casamento entre a FGV e o IDP. [vide aqui]

Em 2017, Gilmar Mendes criticou pesquisa da FGV Direito sobre o baixo número de políticos acusados de crime. Disse que o estudo “Supremo em Números”, publicação da FGV, fez “uma notória e grotesca manipulação”. [veja aqui]

Em 2008, Joaquim Falcão, professor da FGV Direito Rio, então membro do Conselho Nacional de Justiça, presidido por Gilmar Mendes, foi relator no caso de um juiz de Goiânia, sócio de um curso jurídico.

Em seu voto, Falcão sustentou que magistrados não podem ser sócios de cursos jurídicos e nem de qualquer outra atividade na qual possam usar seu prestígio para obter lucro. Determinou ao juiz o desligamento da sociedade.

Dez anos depois, entrevistado no programa de Pedro Bial na TV Globo, Falcão usou o mesmo argumento em relação a Gilmar Mendes. “Na medida em que você usa a autoridade como ministro do Supremo para ganhar dinheiro, temos uma questão ética”, disse.

Gilmar Mendes não quis comentar a fala de Falcão.

Segundo a revista Crusoé, a receita dos patrocínios de empresas e entidades aos eventos do IDP, em 2016, foi de R$ 4,3 milhões.

Joaquim Falcão e Sidnei Gonzalez, diretor de Mercado da FGV Projetos, foram sócios anos atrás num empreendimento. Estão rompidos por causa de uma disputa sobre a venda de um imóvel. Em 2016, o STJ decidiu a favor de Gonzalez. As partes ainda recorrem.

O caso é privado, mas ganhou interesse público porque o relator, ministro João Otávio de Noronha, não se declarou impedido. Gonzalez já disse que é amigo do presidente do STJ, que participa, como convidado, de seminários do IDP e da FGV Projetos.

O Conselho Nacional de Justiça fracassou ao tentar disciplinar os eventos promovidos por associações de magistrados.

Eis alguns exemplos de abusos e distorções.

– A Associação dos Juízes Federais da 1ª Região (Ajufer) mantinha uma contabilidade paralela (caixa dois) para eventos em ressortes. Usava recursos de empréstimos fictícios da Fundação Habitacional do Exército. Ex-presidentes da Ajufer viajavam com familiares. Alguns hospedavam-se dias antes do evento e deixavam o hotel dias depois. [veja aqui]

– A título de comemorar os 200 anos da chegada da família real ao Brasil, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região programou cerimônia num luxuoso hotel em Búzios (RJ). A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) serviu de intermediária da corte (laranja, segundo um juiz) para arrecadar dinheiro de empresas. [veja aqui]

– O TRF-2 usou helicópteros da Marinha para levar magistrados a um ressorte em Angra dos Reis. Para disfarçar o lazer, anunciou que haveria reunião do Conselho da Justiça Federal no local. Não houve.

– Ministros do STJ e presidentes de tribunais fizeram rápidas visitas a tribunais da Alemanha. Viajaram em primeira classe, com despesas pagas e diárias antecipadas em dólar. Para reforçar a imagem de encontro acadêmico, dez juízes federais foram sorteados para acompanha-los, mas tiveram que desembolsar as suas despesas.

– Em 2011, a Associação Paulista de Magistrados (Apamagis) promoveu torneio de golfe entre advogados e juízes, no Guarujá. Levantou recursos de empresas e escritórios de advocacia. A entidade alegou que era um evento beneficente. [veja aqui]

– Em festa de final de ano da Apamagis, houve sorteio de eletrodomésticos, cruzeiros, viagem para Paris e um automóvel, brindes oferecidos a juízes por empresas. Elas alegaram que o objetivo era mercadológico, para “expor a logomarca”. [veja aqui]

– Em 2013, o CNJ proibiu a distribuição de brindes. Uma resolução limitou em 30% o patrocínio de eventos. Versão anterior proibia qualquer auxílio.

Naquele ano, o então corregedor nacional Francisco Falcão recusou convite de juízes de Pernambuco para discutir os limites a viagens e eventos. O debate seria num ressorte em Fernando de Noronha.

Falcão determinou que o encontro fosse realizado no Recife.

OUTRO LADO

A assessoria de comunicação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) informa que a parceria com a FGV Projetos “é de natureza estritamente acadêmica, não afetando interesses financeiros de nenhuma das partes”.

“A seleção dos participantes é feita com base em critérios acadêmicos e de pertinência temática. O IDP é remunerado por meio das mensalidades pagas pelos seus alunos”, informa.

As opiniões de Joaquim Falcão e Gilmar Mendes são “manifestações que refletem pontos de vistas e visões do mundo pessoais, que devem ser analisadas no âmbito do debate público”, diz o IDP.

A assessoria de imprensa da Fundação Getúlio Vargas informa que “os recursos financeiros envolvidos, próprios ou captados pela FGV, integram um fundo para investimento em produção científico-acadêmica, não havendo remuneração para a FGV ou seus funcionários”.

“Não há qualquer remuneração ou benefício aos palestrantes ou envolvidos”. Viagens e hospedagens internacionais de palestrantes e acompanhantes são custeadas, individualmente, pelas instituições organizadoras.

“As instituições parceiras não são remuneradas pela FGV e seus modelos de captação de recursos são individuais e de responsabilidade de cada instituição”.

“A parceria técnico-científica acadêmica com o IDP não foge a esses rigorosos critérios”, diz.

Sobre a disputa judicial envolvendo Sidnei Gonzalez e Joaquim Falcão, a assessoria informou que a sociedade se restringia a um imóvel adquirido antes do início das atividades de ambos na FGV.

Trata-se de uma relação privada, informou a assessoria. “O que ocorreu foi uma desavença, na ocasião da venda do imóvel. Como não se chegou a um acordo a questão foi judicializada”.

Consultados, Joaquim Falcão, Sidnei Gonzalez, Gilmar Mendes e João Otávio de Noronha não se manifestaram.