Instituto Não Aceito Corrupção firmou carta contra intervenção em ONGs

O Instituto Não Aceito Corrupção foi um dos signatários de carta aberta enviada ao ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz, titular da Secretaria de Governo. No documento, mais de 50 entidades manifestam o temor de intervenção governamental e monitoramento das organizações da sociedade civil.

As entidades se posicionam contra a Medida Provisória nº 870/2019, por entenderem que o objetivo é monitorar as Organizações Sociais.

A medida atribui à Secretaria de Governo “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”.

Dez dias depois, o Diário Oficial da União publicou decisão do Ministério da Justiça indeferindo o pedido de qualificação do Instituto Não Aceito Corrupção como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip).

O presidente do instituto, promotor de Justiça Roberto Livianu, não vê relação entre os fatos. Diz que não havia sido notificado do indeferimento, que atribui a um erro burocrático. Acredita ter havido “problemas sistêmicos” que acarretaram o não recebimento de documentos exigidos. [veja aqui]

No mesmo dia, o instituto enviou documentos e requereu a reanálise do pedido.

O Ministério da Justiça alegou o descumprimento de alguns artigos da legislação que dispõe sobre a qualificação –como Oscips– de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos. O ato foi assinado pelo diretor do Departamento de Promoção de Políticas de Justiça, Julio Cesar Bertuzzi.

A carta aberta afirma que “a existência de uma sociedade civil plural, atuante e autônoma é essencial para a qualidade da democracia. Não à toa, nossa Constituição assegura liberdades de associação, expressão e manifestação e veda qualquer interferência estatal no funcionamento das associações”.

“Preservar a autonomia da atuação das organizações não governamentais é, portanto, fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade efetivamente democrática”, afirmam os signatários, que, na correspondência, solicitam audiência ao ministro.

Ao divulgar a carta no site da entidade que dirige, Livianu afirmou que “é basilar para o Instituto Não Aceito Corrupção a defesa da democracia, dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, tanto quanto do combate à corrupção. Entendemos que sem eles não há que se falar em combate à corrupção, já que este remédio só existe onde também estão os demais”.

Em entrevista à BBC News Brasil, o ministro Santos Cruz disse que “o objetivo não é de restrição, não é de influir no método de trabalho, não tem nada a ver”. “É simplesmente de coordenação e de obter melhores resultados”.

Segundo o Ipea, havia 820 mil ONGs no Brasil em 2016, das quais 7.000 receberam recursos do governo federal.

O lançamento da carta foi registrado em reportagem de Joelmir Tavares, na Folha.[veja aqui]

Procurado na ocasião, Santos Cruz informou, por meio da assessoria de imprensa, que o objetivo da medida provisória “é dar transparência à sociedade brasileira sobre o uso dos recursos públicos e os resultados obtidos, com o máximo de transparência e publicidade”.

Segundo ele, a iniciativa “não discorre sobre interferência ou independência das organizações”.

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Eis a íntegra da carta aberta ao ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz:

Excelentíssimo Senhor Ministro,

Foi com profunda preocupação que as organizações da sociedade civil abaixo assinadas acompanharam a publicação de Medida Provisória nº 870/2019, que em seu artigo 5º inciso II atribuiu à Secretaria da Governo a responsabilidade de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”.

A existência de uma sociedade civil plural, atuante e autônoma é essencial para a qualidade da democracia. Não à toa, nossa Constituição assegura liberdades de associação, expressão e manifestação e veda qualquer interferência estatal no funcionamento das associações. Garantir essas liberdades previstas pela CF é o que permite a existência dos mais variados grupos e a defesa dos mais distintos interesses e causas. Preservar a autonomia da atuação das organizações não governamentais é, portanto, fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade efetivamente democrática.

Otimizar recursos e coordenar ações para aprimorar políticas e serviços públicos é decerto uma iniciativa relevante para o governo. Para isso, já existe o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. No entanto, se a implementação de medidas com esses fins compreende intervenções na atuação das organizações da sociedade civil, acreditamos que princípios constitucionais basilares à democracia passem a estar em risco. E quando dois ou mais preceitos entram em choque é imprescindível que seja respeitado o mais fundamental deles, nesse caso o preceito da não interferência direta do governo na forma e formato de livre organização da sociedade civil.

Como se sabe, as OSCs são condicionadas apenas à licitude de seus fins e legalidade de suas condutas, podendo ser fiscalizadas e eventualmente sancionadas se desrespeitarem a lei. Para isso há Ministério Público, Receita Federal, Tribunais de Contas e, por último, a Justiça.

Muito além de complementar as ações do governo, a sociedade civil organizada cumpre o papel de ​locus da cidadania, é promotora de pautas e debates essenciais à construção do país e alimenta de forma efetiva a vida democrática ao redor do território nacional. ​Ademais, as organizações da sociedade civil atuam de maneira próxima à população na representação de interesses de diversos segmentos, podendo, portanto, colaborar para construção de políticas públicas mais eficazes e eficientes para atender às demandas da população. ​Valorizar e respeitar os princípios de sua atuação é prezar pelo bom funcionamento do nosso regime democrático.

Em sintonia com entrevista concedida por vossa Excelência à BBC, publicada no último dia 6 de janeiro, na qual Vossa Excelência reafirma que sua secretaria está de portas abertas e almeja o diálogo com organizações da sociedade civil, vimos por meio desta carta solicitar uma audiência com Vossa Excelência para abordar medidas cabíveis para que a MP seja retificada a fim de que esteja em conformidade com a nossa Constituição Cidadã.

Com saudações cordiais e plenamente dispostos ao diálogo,

São Paulo, 08 de janeiro de 2019