O CNJ e a censura prévia a magistrados
Na mesma sessão em que o Conselho Nacional de Justiça —num aparente recuo— arquivou procedimentos preliminares contra onze magistrados que se manifestaram nas últimas eleições, o presidente Dias Toffoli retirou de pauta um segundo pedido de providências contra a desembargadora Kenarik Boujikian, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Sobre o primeiro procedimento, Boujikian disse ao CNJ que as postagens feitas no Facebook não se identificam com qualquer tipo de dedicação político-partidária. Afirmou que “nunca realizou atividade político-partidária e jamais usou a jurisdição para fins político-partidários”.
O segundo procedimento, cuja tramitação foi suspensa, trata de comentários que a desembargadora fez sobre Toffoli ter definido o período da ditadura militar como um “movimento”.
Em um seminário no auditório da Folha, em outubro último, Kenarik disse que “um ministro do Supremo Tribunal Federal chamar de movimento um golpe reconhecido historicamente é tripudiar sobre a história brasileira”.
“De algum modo, é desrespeitar todas as nossas vítimas”, afirmou a desembargadora. Ela disse ainda que “o Judiciário está disfuncional em relação ao sistema democrático”.
Diante dessas declarações, o corregedor nacional de Justiça, Humberto Martins, instaurou, de ofício, procedimento contra Boujikian. Ou seja, sem que o CNJ tenha sido provocado.
Ele afirmou em sua decisão que o comentário da desembargadora, “em tese, pode caracterizar conduta vedada a magistrados” (CF/1988, artigo 95, parágrafo único, III, LOMAN, artigo 36, III). Martins determinou que Boujikian apresentasse informações, no prazo de 15 dias.
A fundamentação do corregedor foi recebida com restrições, porque a Loman veda ao magistrado “manifestar opinião sobre processo pendente de julgamento”, ou “juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais”.
Como registrou o jornal Valor, “a fala de Toffoli, no entanto, não foi nos autos de nenhum processo, mas também durante um evento público”.
Se a instauração do procedimento contra Kenarik resultou de convicção pessoal do corregedor, de pedido de Toffoli, ou se foi tomada para agradá-lo é irrelevante.
Toffoli é parte interessada no caso e deve se julgar impedido de votar.
O que está em discussão é o limite do CNJ para cumprir suas atribuições sem atuar como conselho de censura, cerceando a livre manifestação do pensamento.
Como era previsível, Boujikian sustentou o que falara, segundo relatou o jornalista Reynaldo Turollo Jr., na Folha.
“Eu penso que não há outra forma de denominar o período pós 64: foi uma ditadura e chamar de outro modo é tripudiar a história brasileira, suas vítimas e toda a humanidade. Mas vou aguardar a notificação para dar maiores esclarecimentos”, disse.
No julgamento dos magistrados que se manifestaram previamente nas eleições que conduziram Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência da República, Martins deixou evidente, em seu voto, que a corregedoria pode ter sido precipitada.
“Considerando que o Provimento 71/2018 é muito recente, recomendo a sua devida observância, a fim de evitar a instauração de futuros pedidos de providências que resultem na adoção de medidas mais enérgicas por parte desta Corregedoria Nacional de Justiça”, votou.
O conselheiro Luciano Frota, em voto convergente, vislumbrou a intenção de censura no ato do corregedor: “A edição de ato normativo que limita a livre manifestação do pensamento, definindo, a priori, as condutas que representam a suposta extrapolação desse direito, configura censura prévia, que não tem, a meu juízo, guarida constitucional”.
Kenarik recebeu apoio de juristas e especialistas, entre outros, Conrado Hübner Mendes, professor de Direito da USP; Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da FGV Direito SP, Marcelo Figueiredo, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, e Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito SP.
Em nota de repúdio, a JusDH (Articulação Justiça e Direitos Humanos), uma rede nacional composta por entidades e organizações de assessoria jurídica a movimentos sociais, afirmou que a ação do CNJ “representa os tempos de retaliação ao pensamento progressista e a racionalização da atual estrutura do Judiciário brasileiro”.
“O novo processo administrativo instaurado pelo CNJ revela, mais uma vez, a perseguição a uma magistrada que orienta sua ação para o cumprimento de um Estado democrático de direito. O processo também revela um Sistema de Justiça que se presta à negação da história do país”, afirma o texto da JusDH.
Segundo o site Jota, Toffoli afirmou que sua menção ao “movimento de 64” não é uma novidade e que já tratou disso em artigos publicados em livros.
Consultado pelo Blog, o CNJ informou que a desembargadora já prestou informações e que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entrou com pedido de ingresso no procedimento, em 3 de dezembro de 2018, que foi deferido pelo corregedor nacional em 17 de dezembro de 2018.
“No momento, aguarda-se nova inclusão do pedido de providências em pauta”, informou a assessoria de imprensa do CNJ.