Membros do MPF temem a criação de ‘procuradores biônicos’
Foi encaminhado à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, o “Manifesto em Defesa da Independência do Ministério Público”, documento subscrito por 619 membros em atividade –o que ultrapassa a maioria absoluta da instituição.
Os signatários demonstram preocupação com a criação de “ofícios especializados de atuação concentrada em polos”, um projeto que altera a distribuição de casos entre os procuradores.
Eles alegam que o projeto foi apresentado “a toque de caixa e sem discussão aprofundada”.
“Pela proposta, esses casos especiais passariam a ser conduzidos por membros definidos, em última análise, pela cúpula da instituicão, não mais por membros que alcançaram os ofícios pelo critério legal e objetivo da remoção”.
Segundo a manifestação, “ainda que confeccionado com boas intenções, é preciso atenção para um projeto que, mesmo reflexamente, permitirá a existência de procuradores da República ‘biônicos’, o que em nada interessa à sociedade brasileira”.
O documento foi encaminhado a Dodge em ofício assinado pelo subprocurador-geral Mario Luiz Bonsaglia, ex-membro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Bonsaglia é citado entre os procuradores que articulam a sucessão na PGR, segundo recente reportagem do jornal Valor Econômico. Ele ocupou o terceiro lugar na lista tríplice da categoria, quando Dodge foi escolhida como PGR.
Também assinam o manifesto os procuradores Deltan Dallagnol, Vladimir Aras e Guilherme Schelb, possíveis candidatos na corrida eleitoral, segundo o jornal.
Raquel Dodge, ainda segundo o Valor, “deve tentar a reeleição contra ao menos sete adversários” (a lista inclui, além dos já citados, os procuradores José Robalinho Cavalcanti, Nicolau Dino e Lauro Cardoso).
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Eis a íntegra do o manifesto:
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Os membros do Ministério Público Federal (MPF) que assinam este manifesto vêm a público externar sua preocupação com o projeto de resolução recentemente apresentado pela Exma. Procuradora-Geral da República, voltado à criação de “ofícios especializados de atuação concentrada em polos”.
Da maneira como redigida, a proposta, sob alegação de conferir maior eficiência e especialização à atuação do MPF, altera significativamente os critérios que disciplinam a distribuição de casos entre os Procuradores da República em todo o país.
Preocupa ainda, e em especial, a tentativa de aprová-lo a toque de caixa no Conselho Superior da instituição, em prejuízo de uma discussão mais aprofundada, tendo em vista seu caráter profundamente reestruturante.
Na configuração atual, em vigor desde a promulgação da Constituição de 1988, a definição do Procurador responsável por cada investigação, o chamado “Procurador natural”, observa critérios objetivos de distribuição previstos na lei e na própria Constituição.
A finalidade de tais critérios é assegurar à sociedade transparência quanto à forma de escolha do Procurador natural para cada caso, impedindo qualquer tipo de interferência em sua designação, seja da própria cúpula da instituição, seja de agentes externos, bem como garantir que não haverá intromissões indevidas tanto na instauração quanto no curso das investigações.
Escolhido de forma objetiva e protegido de interferências externas, tem-se um ambiente ideal para que o Procurador da República responsável por cada investigação atue com independência, buscando apenas a fiel aplicação da lei. Esta, a chamada independência funcional, é a pedra angular do modelo de Ministério Público brasileiro, instituído pelo Constituinte de 1988.
Além disso, essa independência é a principal chave para compreender como, ao longo das últimas três décadas, o Ministério Público Federal passou a ser percebido pela sociedade brasileira como uma instituição de excelência, gozando de inegável credibilidade, através do desenvolvimento de trabalhos relevantes, não apenas ligados à operação Lava Jato e ao combate à criminalidade em geral, como também, no âmbito da tutela dos direitos coletivos, em defesa da boa gestão de recursos públicos, do meio ambiente, dos direitos das populações indígenas e quilombolas e das liberdades civis de todos os cidadãos.
Já o projeto de resolução em questão pretende modificar as formas de designação de membros que atuarão em casos prioritários, relacionados a “problemas crônicos ou de alta complexidade” que chegarem ao Ministério Público Federal.
Pela proposta, esses casos especiais passariam a ser conduzidos por membros definidos, em última análise, pela cúpula da instituicão, não mais por membros que alcançaram os ofícios pelo critério legal e objetivo da remoção. Tampouco teriam a permanência garantida na condução desses casos, criando-se a necessidade de renovação de sua designação a cada dois anos, situação sem paralelo na atuação de juízes, delegados, auditores fiscais e tantas outras carreiras.
A radical e pouco debatida proposta da Exma. Procuradora-Geral da República concentra nas mãos da cúpula da instituição um enorme poder e pode vir a resultar, em algum momento, como efeito colateral deletério, na criação de mecanismos de ingerência, ainda que de forma indireta, sobre a atuação dos Procuradores da República, em prejuízo de sua plena independência para atuar.
Ainda que confeccionado com boas intenções, é preciso atenção para um projeto que, mesmo reflexamente, permitirá a existência de Procuradores da República “biônicos”, o que em nada interessa à sociedade brasileira.
Nesse contexto, os signatários entendem que merece ser vista com cautela a tentativa de aprovação, de modo sumário, de uma proposta que tem grande potencial para minar essa dinâmica objetiva, impessoal e plural de tratamento das questões sob atribuição do Ministério Público Federal.
Não se trata de descartar o desenvolvimento de estratégias de especialização e de maior eficiência e a ampliação de mecanismos de accountability nas atividades ministeriais. Todavia, essa discussão deve ser feita de forma ampla, aprofundada e cuidadosa, considerando-se inclusive seus reflexos frente às diferentes realidades do País.
Para que o MPF possa seguir cumprindo sua missão constitucional, atendendo à sociedade brasileira, é indispensável, pois, seja mantido o pleno respeito ao modelo estabelecido pela Constituição de 1988, a bem do Estado Democrático de Direito.